O HOSPITAL
Ao longo das últimas talvez duas décadas, tenho vindo a aperceber-me de um fenómeno, digamos, curioso. Se antes desse tempo e desde que me lembro, quando me dirigia a alguma entidade pública, repartição de finanças, notário, centro de saúde ou hospital, não raro verificava-se, primeiro uma certa similitude entre as instalações e o atendimento, ou seja os funcionários e os utentes, todos caracterizados por uma certa decadência e "mediocridade", um cinzentismo triste mais ou menos generalizado ao qual só escapavam elites cuidadosamente escondidas. Os edifícios eram velhos, ou mal tratados, e as pessoas maioritáriamente bastantes humildes em todos os sentidos e na pior perspetiva do termo. Depois, numa segunda fase, começou a notar-se uma mudança, se as condições e as pessoas que estavam do outro lado dos balcões e secretárias mantinham esse rasto de atraso, o público tinha evoluído, senão muito, para não dizer nada notóriamente na literacia, claramente na apresentação agora muito mais cuidada, testemunhando um claro incremento na auto-estima bem como, naturalmente, o ter um pouco mais de dinheiro no bolso.
O que hoje se pode observar é uma espécie de inversão relativamente a esse dias de obscurantismo no que diz respeito ás infra e estruturas, obviamente melhores, eventualmente o lado mais positivo do autêntico fartar vilanagem que foi a distribuíção, seguindo critérios duvidosos e sobretudo pouco vigiados, dos milhões que chegaram da Europa. Mas, desgraçadamente, o oposto, para pior portanto se olhados atentamente os utilizadores dessas renovadas e, tantas vezes principescas instalações, afinal quanto maiores fossem os valores envolvidos mais dava (dá?) para sacar. Um destes dias fui a um hospital magnífico, tudo novo ou bem cuidado, impecávelmente limpo e funcional, atendimento atento, competente e mesmo solícito. Um serviço eficiente sob todos os pontos de vista nomeadamente na prontidão, quer da marcação da consulta, quer do atendimento pelo médico respetivo, e até da surpreendente rapidez da intervenção cirúrgica achada necessária. Infelizmente a razão da existência de tudo aquilo, as pessoas que não podem nem precisam, não obstante algumas não o saberem e daí as reclamações completamente absurdas, ir a um serviço privado, andam por ali com a desilusão e as privações estampadas no rosto. As poucas posses exibem-nas na apresentação tristonha quando não negligente ou desleixada. É gritante a contradição entre a atitude e aspeto da grande maioria daquela gente, e as quase luxuosas paredes e mobiliário que as cercam, para além da bem oleada e até agradável funcionalidade de um conjunto de profissionais, nos quais sobressai a óbvia preocupação e cuidado na manutenção de algo cada vez mais raro, um emprego e consequente salário. A pobreza e a indigência, fisícas e morais, estão de volta! Valha-nos ao menos o consolo de que agora podemos praticá-las confortávelmente...nos serviços públicos.
O TECLADO
Ela estava a escrever no teclado de um computador portátil, e a fazía-o com tal rapidez, utilizando vários dedos de cada mão, que me deixou completamente hipnotizado, olhos cravados naquele portento. Por isso, eu que uso frequentemente a mesma ferrramenta, comentei num tom misto de desejo e frustração, quem me dera escrever a esse ritmo! Levantou a cabeça, encarou-me e disse, estou muito habituada, trabalho com isto desde muito nova (teria à volta dos trinta), e o pior é que se tentar escrever à mão não dá, nem consigo pensar! Claro, tem de se concentrar no ato físico, que lhe é quase estranho, da mão a pegar em algo que escreva, mas o essencial não é isso, a questão é que escrevendo muito mais depressa também o faz com o racíocinio, ou seja pensa muito mais rápido. Eis outro motivo para que toda estas gerações mais jovens sejam claramente mais acutilantes no raciocínio, mais espertas porque mais despertas. Que a informática era, em grande parte, por esse fenómeno responsável, bem como pelo reverso da medalha, "surfarem" as ideias sempre à superfície, ficarem nisso viciados porque afinal foi assim que aprenderam, daí a enorme dificuldade de muitos deles em se deterem e concentrarem num racíocinio, e de o aprofundarem, falta-lhes a paciência tal como constitui um sacrifício escreverem à mão. A novidade, para mim como é óbvio, foi ter constatado toda essa incrível porque estrutural, mudança na maneira de raciocinar, ali bem à minha frente consubstância no simples ato de escrever em teclas de um computador, e do efeito avassalador que esse gesto aparentemente tão inocente pode ter na mente de uma pessoa, de milhões de pessoas, e, consequentemente, na própria história que ainda se irá contar sobre a humanidade.