Num cenário de degradação, prédios semidestruídos, árvores caídas, estradas esburacadas, isto em pleno centro de uma cidade em tudo parecida com as que habitámos, mais concretamente junto a um daqueles bairros sociais que existem às dezenas nas nossas maiores urbes, vêem-se grupos de pessoas a circular frenéticas, movidas a medo e frio, a neve e o gelo assustam pela quantidade e estado, maioritáriamente já transformada em lama acastanhada, camada sobre camada, com meses em cima, mas também uma ou outra a deambular perdidas, sem destino. Entre estas uma ternurenta velhotita, ou talvez uma mulher de meia idade precocemente envelhecida, exaurida mas em busca de um último sopro de energia, protesta num choro já seco, gemente, "sou velha, porque não morro? estão sempre a morrer jovens, porque não morro?" A câmara de filmar procura outros transeuntes. Escolhe um casal com aspeto a roçar o andrajoso cujo homem reclama com o desespero estampado no rosto, "estamos numa cave, dezenas de pessoas entre elas muitas crianças, por causa do medo das bombas quando caem. Não temos água, comida, sanitários nem aquecimento". A imagem seguinte que aparece na televisão presume-se ser da tal cave, onde domina a escuridão só interrompida por uma espécie de candeeiro a petróleo ou coisa do género. O fraco e curto foco de luz começa por mostrar olhos onde é possível ler um completamente inesperado sorriso, são as crianças a viver uma trágica aventura, de dimensões que felizmente não podem adivinhar. Os adultos ou escondem a cabeça debaixo dos trapos que pouco ou nada os aquecem, a injusta vergonha a somar a um sofrimento indizível, ou fitam descaradamente aqueles dois intrusos de uma estação televisiva de um mundo que há escassos meses era real, ou pelo menos algo perfeitamente atingível, mesmo reclamado como direito inalianável, afinal estava tudo ali tão perto!, numa atitude de desafio, espécie de grito ao mundo para que veja como morrem as ilusões.
Hoje, parte da Ucrânia, aquela que é objeto da gula dos poderosos deste mundo, muito mais preocupados em políticas geoestratégicas que garantam a sua posição dominante, do que com os milhares de mortos, e as centenas de milhares que sobrevivem em condições para além de tudo o que seria imaginável há meia dúzia de meses, mantém-se num impasse que não deixa nenhuma das potências envolvidas inocente. Quando o ocidente apoiou sem reservas a revolta de Kiev, uma bela e inusitada manifestação de liberdade, com tanto de dolorosamente genuína da parte do povo ucraniano, quanto de cínica da parte de quem mexe os cordelinhos no palco global, sabia que com isso estava, como aliás continua, a desafiar o enorme poder russo, contribuindo assim decisivamente não só para a desgraça que aquela gente vive atualmente, mas eventual e desgraçadamente para o alargar de um conflito do qual ninguém pode prever os limites sob todos os pontos de vista. Ou será que esperavam que a Rússia ficasse impávida e serena a assistir à instalação de tropas potencialmente inimigas à sua porta? O que fariam os EUA se uma situação semelhante estivesse a acontecer no México ou no Canadá fruto de uma qualquer revolução filha de legítimas aspirações? Não, não esperavam, sabiam o que ía acontecer. É por isso que ainda mais doi ver todas aquelas pessoas também elas tão notóriamente ocidentais, muito diferentes dos sacrificados povos de médio oriente ou de republicas africanas em permanente estado de guerra, consequentemente com muito mais elevada sensibilidade ao sofrimento, viverem nestas circunstâncias até bem recentemente impensáveis que pela proximidade geográfica e, apesar de tudo, similitude no tipo de sociedade, podem anunciar o horror a bater-nos à porta.