semtelhas @ 15:26

Qua, 19/03/14

 

Desde menino que era capaz de passar tempos infinitos a brincar sózinho em dois metros quadrados com um carrito, a observar durante largos minutos um gato que dormia entre as ervas altas do jardim ou dois caracois a subirem pachorrentamente uma parede, a tentar espreitar as pernas das tias debaixo da mesa de uma refeição, ou, mais tarde, a ler afincadamente ao longo de inesquecíveis tardes inteiras, das quais mantém incrívelmente vivos os mais pequenos pormenores, quer do que o rodeava, quer do que se passava durante esses períodos vitais na construção da pessoa que viria a ser, em que mantinha os sentidos absolutamente alerta graças à concentração total em que se encontrava mergulhando num livro. Aparentemente, e de facto, pouco acontecia na realidade mas, dentro da sua cabeça, desfilavam terríveis acidentes, disputavam-se emocionantes corridas, era atacado por um perigoso e enorme felino, quase conseguia senti-lo imaginando o perfume misterioso, adocicado e quente que axalava do meio das pernas daquela jovem tia em especial e, aos livros, foi buscar tudo, a até razão para continuar a existir...

 

Os primeiros tempos na escola foram terrívelmente difíceis porque raramente permanecia dentro da sala de aulas, só lá ficava o seu corpo. Era por isso um mau aluno e perseguido por professores e colegas. Os primeiros desesperavam pela sua incapacidade  em aprender, assumindo foros de verdadeira tortura se tinha que dar públicas demonstrações da sua incontornável burrice quando, por exemplo, o mandavam ir ao quadro, os segundos com a crueldade própria da crianças, fruto da sua absoluta e ingénua sinceridade, faziam dele uma espécie de bobo da turma e mesmo, algumas vezes, bombo da festa. Sempre metido consigo mesmo, muito longe algures num outro mundo, circunstância com o passar do tempo por todos percebida, era desses sonhos brutalmente despertado, ora pelos gritos, cachaços se fosse homem ou puxões de orelhas se fosse mulher no caso dos professores, quer pelos sustos que lhe pregavam os colegas que riam a bandeiras despregadas com os saltos que dava.

 

Na violência do seio familiar, pela qual o lado materno lhe parecia o culpavam, ainda muito antes de ir para a escola, já ao miúdo que era chamavam os mais variados nomes para além daquele que realmente tinha, morcão, songa, medricas, sustrão. Sempre com a cabeça no ar. Em todos eles sentia uma acusação que mais o diminuía. Enquanto os primos se expressavam ruidosamente nas suas brincadeiras, cometiam os excessos que deles se esperavam, subir a árvores, andarem à pancada, sujarem-se até à epiderme, magoarem-se nos joelhos, ele permanecia pacato e estranhamente limpo a observá-los, sugerindo esta ou aquela alternativa, mesmo ordenando isto ou aquilo, e só chegava a casa com os joelhos a sangrar por sistemáticamente correr distraído sem olhar para onde punha os pés, pelo que passava a vida a tropeçar, cair e a magoar-se. Ninguém ostentava mais feridas que ele! Autênticas medalhas quase autoinfligidas e fitadas com orgulho, que então não percebia serem como que únicas provas, que dava a si mesmo e aos outros, da sua existência fisíca e similaridade com todos.  

 

Foi crescendo, lendo, observando e aprendendo. A adolescência ainda foi dolorosa mas mais por causa das reminiscências duma infância aterradora, porque a sua existência era já quase exclusivamente uma fuga na leitura, nos intervalos da qual decorria a vida real, o que, simultâneamente, lhe ía fornecendo ferramentas para se defender, desmontando as multiplas fraquezas que crescente e surpreendentemente descobria naqueles que, havia ainda tão pouco tempo! invejava, admirava e considerava  imensamente superiores a si próprio. Com os primeiros anos de juventude chegou a liberdade, quando começou a pôr em prática a sua formidável capacidade de argumentação, filha do conhecimento e preciosa experiência nascidos das inúmeras histórias lidas, e do correto uso das palavras. Primeiro em casa, derrotando um pai em fúria, depois na escola onde passou a brilhar entre os melhores, finalmente na vida que aprendeu a compreender desvendado a beleza que esconde em toda a sua crueza. Hoje, mais que nunca interpretando-a através de toda a expressão artística e muito particularmente da literatura, tem por lema, pés bem assentes na terra e cabeça nas núvens!


direto ao assunto:

"O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo."
procurar
 
comentários recentes
Pedro Proença como presidente da Liga de Clubes er...
Este mercado de transferências de futebol tem sido...
O Benfica está mesmo confiante! Ou isso ou o campe...
Goste-se ou não, Pinto da Costa é um nome que fica...
A relação entre Florentino Perez e Ronaldo já deve...
tmn - meo - PT"Os pôdres do Zé Zeinal"https://6haz...
A azia de Blatter deve ser mais que muita, ninguém...
experiências
2018:

 J F M A M J J A S O N D


2017:

 J F M A M J J A S O N D


2016:

 J F M A M J J A S O N D


2015:

 J F M A M J J A S O N D


2014:

 J F M A M J J A S O N D


2013:

 J F M A M J J A S O N D


2012:

 J F M A M J J A S O N D


mais sobre mim