Homossexual assumido quando tal ousadia só era permitida a "aves raras", incontornavelmente e exclusivamente assim aceites, alguém que era mantido a uma distância conveniente, visto como outrora os bobos da corte e tratado como uma aberração, ou então, como era o caso do Joãozinho, um monumental excêntrico de posses, na meia idade com nome de rapazito que se podia dar ao luxo de exibir e mesmo afrontar um público reverente e hipócrita, uma postura reveladora de apetites que muitos tinham mas poucos ousavam mostrar.
Possuidor de um demolidor humor caustico, pleno de sarcasmos, já na altura, anos sessenta, fazia-se passear dentro de uma enorme "banheira", um Opel Record se não me engano, convenientemente grená, uma cor a um tempo chique e vistosa, quando impecávelmente polida, fazendo resplandescer também os inumeros cromados. Seguia majestosamente sentado no amplo e único autêntico sofá de sala que aquilo parecia, de porta a porta, muito comum nos "espadas" daquele tempo, seguramente, pensavam os mais impuros, bem jeitoso para inconfessáveis "ginásticas" com o motorista logo ali ao lado, seu inseparável fiel companheiro e criado para todo o serviço.
Quando a espampanante viatura deslizava pelas estreitas ruas do lugar onde vivíamos, um daqueles sitios onde todos se conhecem nutrindo uns pelos outros os mais variados e conhecidos sentimentos, alimentados sobretudo pela miséria, inveja, mesquinhez, subserviência, e muita prepotência e vaidade de poucos sobre quase todos, ele a caminho do seu palacete rodeado de um vasto e verdejante jardim, mesmo ao lado da igreja e com uma incrivel vista sobre o Porto lá ao longe, já os embasbacados e reverenciais espetadores das suas pequenas e tantas vezes escuras e mal arejadas habitações, entre, naturalmente, outras atividades. Nessas ocasiões podia ver-se uma criatura magra, fina, e com ar contrito, quase reverencial, ao volante, e, ao lado, uma espécie de Buda avermelhado, esparramado ainda que bem direito, agarrado à pega lateral superior para, digamos, não adornar, mas possuidor de uma expressão onde imperava a dignidade e poder dos reis.
Quanto a mim, observava-o quando, como habitualmente, andava por ali ou vinha, ou ía para casa, no caso de qualidade e conforto bem acima da média para o lugar, um daqueles predios com uma grande abertura comum interior para quatro inquilinos, delimitada na frente por um jardim e atrás pelos quintais milimetricamente divididos, escrupulosamente aproveitados através de hortas de entre as quais orgulhosamente sobressaía a do meu pai, dali saíam as melhores batatas, os maiores nabos ou cenouras, ou brotavam os mais vistosos e saborosos legumes, mas, mesmo assim, não escapava à jocosa denominação que por Joãozinho lhe era dada de Ilha da Babi, tudo por causa de uma razoavelmente gorda mas sobretudo extremamente ruidosa cadela com aquele nome, com a qual o ilustre mantinha um odiosa batalha muito particular, a bicha, por razões desconhecidas, ladrando até à exaustão quando o via na desesperada esperança de uma gostosa mordidela, ele ruminando mudas vinganças que logo vertia sobre os pobres humanos dela vizinhos.
Mas não só. Porque tinhamos um conhecimento comum, um dos tais quatro inquilinos, durante para aí uns três ou quatro verões, talvez entre os seis e os nove anos de idade, e porque ele naturalmente vivia dos rendimentos recebidos das rendas dos muitos estabelecimentos comerciais que tinha nas melhores ruas do Porto, logo tinha todo o tempo do mundo, faziam uma diaria e matinal visita à praia na qual eu os acompanhava durante praticamente aos três meses de férias grandes, rotina só interrompida aquando das férias dos meus pais. Foi por isso meu previlégio, a boiar no banco de trás, também ele corrido, ao lado dessa carinhosa mas especialmente solícita vizinha a quem chamei tia desde pequenino, muito porque de facto desempenhava esse papel e nada pelo cliché exclusivo dos da Foz, pela janelas invariavelmente fechadas para não perturbar a circulação da ventilação artificial que se fazia sentir estranhamente fresca, observar os meus habituais companheiros e conhecidos de olhos arregalados, uns de admiração, outros de inveja, mas todos de espanto.
O verdadeiro espetaculo começava quando finalmente chegavamos, bem cedo para nunca perder para outros o previligiado local estrategicamente selecionado pelo incansável companheiro de Joãozinho, com largas vistas para o mar que ficava a uma vintena de metros na vazante, e a uns palpitantes dez na enchente ainda que sempre suficientemente seguro, mas sobretudo protegido do vento, por aqueles lados muito habitual, por um imponente muro de rochas a norte, às quais nos, e encostavamos as várias sacas onde transportavamos toda aquela panóplia de coisas necessárias a uma permanência que nunca era inferior a umas quatro horas, aí entre as nove da manhã e a uma da tarde, isto quando não eramos prematuramente corridos pela subita aparição de um inesperado nevoeiro, ou arreliadora e inabitual circulante ventania. Depois de devidamente estudado e limpo o terreno, tarefa a que se dedicava com aplicação religiosa o Duarte, o circunspecto acompanhante, e a frenética e prestável Armanda, minha vizinha e sua cunhada, seguia-se a cerimónia do estender as toalhas, a dele uma espécie de lençol mas incrivelmente espesso e fofissímo, sempre em cores garridas, à beira do qual a minha mais parecia uma raquítica fralda de bébe muito gasta pelas inumeras lavagens. Só então se instalava o Buda, gordo e sempre coradissimo, mas, no início da época com o corpo ainda palido, era para tratar disso mesmo que ali estavamos, transformá-lo num atraente e pelo menos aparentemente supersaudável enorme morenaço, uma pele escura onde iriam brilhar grossas voltas e pulseiras, uma profusão de aneis recheados de luminosas pedras, tudo em ouro do melhor, e magníficos relógios das mais caras marcas. Toda uma sumptuosidade que caía como uma luva naquela imensa figura, que se tornava imponente quando era possível vislumbrá-lo fora daquele ambiente. Para além da aura que sempre envolve de mistério alguém que se sabe muito rico, era também graças ao bem tratado ainda que curto cabelo ondulado quase todo branco, a encimar um rosto largo e invariavelmente risonho, finas camisas generosamente abertas até meio do peito, para mostrar a supostamente sedutora selva acinzentada, calças a igualmente exibirem uma elegância e leveza ímpares, confortáveis e brilhantes sapatos pretos, porque tudo isto resultava esplêndido apesar do elefantino pesado andar, onde as mal disfarçadas guinadas laterais num esforço de equilibrio, tinha uns surpreendentes pequenos pézitos, eram consideráveis. Mas isso era mais tarde, por agora era preciso trabalhar para o indispensável bronze, tarefa da qual só eu era dispensado brincando por ali perto, isto porque uma vez a sagrada criatura pronta para o efeito era de imediato laboriosamente untada por magnifícos e imagino que caríssimos óleos e cremes, seguramente altamente eficazes na arte de colorir, mas também de proteger a preciosa pele, não esquecendo o inebriante perfume que soltavam, enquanto os incansáveis ajudantes se esfalfavam debaixo do sol inclemente, para só depois terem direito ao descanso do guerreiro.
E assim íam decorrendo aquelas manhãs mágicas, entre as referidas e sempre repetidas cerimonias, as matematicamente estudadas no tempo, nas suas vertentes quando e quanto, bem contra a minha vontade aliás, idas ao mar, que desempenhavam fulcral papel no sedutor escurecimento de "sua majestade", também, e muito, para eles a maior parte daqueles horas e para mim entre quase sempre solitárias brincadeiras de praia, intermináveis e galhofentos monólogos do "verdadeiro artista". Aconteciam enquanto a sua imagem ía evoluído de uma espécie de lagosta gigante acabada de cozer, para o de ansiada apetitosa criatura. É que, para além de tudo o mais, era possuidor de um olhar verdadeiramente cirurgico sobre tudo onde pousava os olhos, e uma não menos acutilante afiada língua para o expressar por palavras, pelo que se assistia a um espetaculo de permanente risota perante os inigualáveis jocosos comentários, plenos de fina ironia misturada com o pior vernáculo e cruel sarcasmo, tudo acompanhado de estudados ou institivos maneirismos, um sem fim de gestos e caretas, nomeadamente quando recorria à apreciação de manias ou pequenas fragilidades que incrivelmente descobria e brilhantemente desvendava, fosse num qualquer desconhecido que de momento passava, ou, na falta de movimento, recordando este ou aquele personagem do nosso conhecimento comum.
Passada essa época dourada deixei praticamente dele ter qualquer noticía durante longos anos até que, para meu grande espanto, um ou dois dias antes de me casar, recebi das mãos da minha "tia" Armanda um embrulho de dimensões e peso razoáveis, que me informou ser a prenda de casamento de Joãozinho. Era um bonito e requintado serviço de café do qual agora seguro uma chávena, durante uma até agora sempre adiada e finalmente levada a cabo corajosa arrumação, são anos e anos de coisas empilhadas, que me trouxe estas saborosas memórias dessa amargodoce figura ímpar.