Estava em pleno Casbar, e apesar de uma espécie de névoa que parecia impedir-me de ver na perfeição, as sensações eram fortes, as cores berravam, por todo o lado, quase uma omnipresença, como que um brilho sagrado imanava de sofisticadas peças douradas, um cheiro intenso a um perfume que me transportava aos confins da memória, mas que não conseguia identificar e, insidioso, aquilo que soava a uma flauta que trazia à tona de uma cesta a magnífica cobra capelo, com as suas vistosas e coloridas escamas que se abriam em leque imediatamente abaixo da cabeça. Reconheci Luísa em quem tocava a sensual melodia, como os seus lábios brilhavam em torno do bocal da flauta!, tal qual a primeira vez que neles reparara. Lentamente começo a ouvir uma discussão que irrompe algures e abafa tudo o resto. Então vejo, ainda por entre a mesma bruma, sentado no chão, encostado a uma parede imunda, num passe de magia o Casbar evaporou-se no ar!, um homem novo mas profundamente envelhecido, enormes barbas brancas, onde encontro os olhos do filho de Eurico numa estranha expressão de paz suplicante e, a afastar-se, a voz vai ficando mais e mais longínqua, descubro Amina. O rosto deslumbrante exibe uma expressão de raiva que parece conferir-lhe, como se fosse possível, ainda mais beleza. Súbitamente, estou dentro de um automóvel acompanhado por dois ou três pessoas que não reconheço. Seguimos a alta velocidade, e eu, ao volante, estou completamente cego, por mais que me esforce não consigo ver por onde sigo. Completamente desesperado, uma mortal sensação de angústia, constato agora que o carro saiu da estrada depois de uma curva apertada que não logrei fazer, e, recuperada a visão, sinto-me a voar sendo crescentemente invadido por uma imensa alegria tranquila. Abro os olhos. Sonhava.
A passagem é suave, surpreendentemente suave. Estou tombado de lado sobre as almofadas, em cima de um dos sofás e, noutro em frente, do outro lado da pequena mesa onde vejo os utensílios que ele trouxera da cozinha mas agora aparentemente após serem usados, o filho de Eurico parece dormir. Está esticado ao comprido, ocupa todo o enorme espaço e ainda fica com os pés, com sandálias, de fora. Não faço ideia quanto tempo passou, senti-me algo perdido mas calmo e tento levantar-me mas as pernas fraquejam pelo que desisto. Quando volto a olhá-lo fita-me com um ar que me pareceu de alguém que se divertia, não obstante o seu estado de abandono quase total. Então começou a falar, devagar mas com impressionante nitidez, clarividência, as palavras saíam-lhe límpidas e absolutamente despidas de dúvidas ou truques. "A Amina foi-se embora", afirmou. "Tínhamos um trato desde que nos conhecemos e nos apaixonamos, a primeira vez que nos vimos em Londres, ela deixava de frequentar as reuniões dos radicais islamitas, e eu largava as drogas, mas nem ela nem eu tivemos a força suficiente para o fazer. Ela é neta de uma mulher que fugiu da Índia após a saída dos ingleses. A mãe, mais tarde, nunca aceitara bem ter abandonado tudo, acabou por voltar, agora já para o novo país que era o Paquistão, zona da Índia de que era originária, e envolveu-se em problemas de ordem política e religiosa, que a obrigaram a voltar a fugir para junto da mãe, levando Amina ao convívio com a sua bem mais moderada e carinhosa avó. Mas era tarde demais, o que ela vira durante os anos em que crescera, e nascera, no Paquistão, haviam-na envenenado para o resto da vida. Para sempre revoltada contra o antigo colonizador, e todos os seus aliados, os quais responsabilizava pela miséria de toda a ordem, física e moral, que grassava no seu país. Quanto a mim também nunca me senti própriamente alinhado com este mundo tão injusto. O meu pai toda a sua vida foi um revoltado, mas na realidade nunca fez nada para mudar fosse o que fosse. Diz-se um filho da revolução, que passa esses princípios para os seus alunos, mas a verdade é que almeja a uma vida burguesa como toda a gente. Eu não queria ser como ele, por isso liguei-me a movimentos e partidos defensores do ambiente, de uma sociedade mais equitativa, pelo fim dos preconceitos e do clientelismo partidário, e sei lá que mais. Tudo desde muito jovem. A própria escola, o sistema de ensino, deixou de fazer sentido, tudo aquilo estava errado e era estúpido. Acontece que o meu pai era o sistema, e achou-se profundamente atingido, magoado, ele que sempre fora um pai exemplar e até camarada!, e um dia chegou mesmo a agredir-me. Não me expulsou de casa mas a convivência tornou-se impossível e então fui viver com uns amigos. Abandonei a universidade, arranjei uns trabalhitos básicos aqui e ali...e pronto. Depois foram as frustrações, perceber que as coisas não eram assim tão simples, mas também a noção de irreversabilidade, que me levaram a fugir e meter-me nestas merdas. Agora acho que estou agarrado e já nem a Amina está para me aturar..."
Calou-se. Práticamente não se tinha mexido e eu tive necessidade de dizer qualquer coisa, "Poucas coisas são irreversíveis nesta vida". Fitou-me e disse, "acho que ela exagerou nos cogumelos do seu chá, adormeceu logo! Tivemos medo que chamasse a polícia...ou o meu pai. Estivemos para aqui a discutir aos gritos e o senhor nem pestanejou! Quando lhe reafirmei que me ía injetar desatou a meter tudo na moxila e nem olhou para trás". Disse estas últimas palavras como quem fala consigo próprio, um esforço de autoconvencimento. O rapaz estava prostrado, destruído. Após nova tentativa levantei-me, dei uma volta pelo apartamento, e verifiquei que de facto só restavam as coisas dele. De repente uma dor aguda atingiu-me bem no meio do estômago e lembrei-me que não comia haviam horas. O que fazer? Chamar Eurico? Era cedo, tinha que dar tempo ao filho para se recompôr, não permitiria que o visse naquele estado. Entretanto, espantado, descobria experimentar uma curiosa e completamente inesperada energia, na verdade não me recordava de tal disposição, tão disponível para a vida. Seria por causa daquela história dos cogumelos? Também eu tivera as minhas questões com drogas nos anos a seguir à revolução, e deixá-las, especialmente os químicos, não tinha sido própriamente fácil. Mas será que um homem com os meus conhecimentos e experiência de vida reagiria hoje como reagiu então? Afastei estas considerações que me varriam a mente como uma ventania passageira e perguntei-lhe, "Não tens fome? O brasileiro faz umas francesinhas fantásticas." Pela primeira vez rodou a cabeça na minha direção e disse pouco convicto, "sou vegetariano." Mantive-me uns momentos em silêncio e depois insisti, "Tens a certeza? Também não bebes álcool?" Como resposta levantou-se com surpreendente segurança e disse com firmeza, "Vamos lá."