semtelhas @ 14:54

Seg, 12/01/15

 

Aparentemente tudo em ordem, até as plantas que tinha no meu pequeno hall privado se mostravam tristemente caídas após duas semanas sem rega ou mimos, apesar de práticamente as ter encharcado de água mesmo antes de sair. Mas quando tentei introduzir a chave a fechadura cedeu e ouvi qualquer coisa a cair do outro lado da porta que, quase sem esforço, se abriu. Só então reparei em alguns arranhões em toda aquela zona que indiciavam arrombamento e temi o pior. Percorri a casa devagar, cuidadosamente, e constatei alguma arrumação não obstante terem andado por ali estranhos, pelo menos comparando com as minhas primeiras expectativas. Na sala as almofadas dos sofás tinham sido colocadas com critério, mas diferente do meu, e o chão mostrava alguma sujidade que me parecia recente, o que confirmei pela cama desfeita no quarto, para além de peças de roupa pousadas aqui e ali. No quarto de banho, razoávelmente limpo, cuja luz tinha sido esquecida ligada, vários apetrechos de limpeza pessoal e, penduradas no varão da cortina da banheira, três calcinhas de mulher ainda molhadas e a cheirar a lavado. Foi quando entrei na cozinha que voltei ao estado de alerta entretanto esquecido, em cima da mesa um estojo com uma seringa, em bom estado, um pedaço de tubo de borracha, e uma das minhas colheres preferidas, a única com um pequeno brasão a fazer de pega, bastante marcada pela aplicação de fogo por baixo da pequena concha. De resto tudo impecável, inclusivé a louça a escorrer, e depois de passar pela porta que dava para o enorme terraço em L virado a sul e poente, uma série de sandálias, sapatos e sapatilhas higienicamente a arejar. Estupefacto debruçei-me na varanda a refletir em tudo aquilo, especialmente numa certa postura de quem tinha vindo para ficar, afinal haviam passdo sómente quinze dias desde que dali saíra! Não tive tempo para elaborar qualquer plano porque ouvi barulhos no interior, alguém que entrava pela porta que eu abandonara não me lembrava muito bem como. Entrei rápidamente na sala, no terraço estaria completamente exposto, e consegui esconder-me atrás da mesa e das oito cadeiras que a rodeavam. Eram dois jovens na casa dos vinte e tais, ele alto de estrutura forte mas extremamente magro, cabelo escuro comprido com rabo de cavalo, enorme barba negra num rosto que me lembrava alguém, aqueles olhos mortiços escondiam uma agitação e entusiasmo que conhecia de qualquer lado...Vestia um poncho bastante colorido, calças de ganga medianamente gastas, e calçava umas sapatilhas de marca práticamente novas. Dirigiu-de de imediato para a cozinha voltando logo a seguir com os apetrechos para se injetar, ou injetarem. Mas depressa percebi que a droga que entretanto pousara ao seu lado sobre uma almofada, seria só para ele. É que a rapariga, muito mais pequena que ele, usando um lenço aplicado justo sobre o cabelo que ainda assim dava para ver negro, pôs no rosto moreno de feições corretíssimas, olhos muitos escuros e vivos, sobrancelhas grossas da cor do cabelo, nariz fino, tal como os lábios, um expressão fria de raiva, e atirou-lhe num inglês pouco menos que impercetível, uma série de ameaças que, disse, cumpriria caso ele continuasse o que estava a fazer. Estava em pé, gesticulava frenéticamente, e eu de repente percebi estar perante uma qualquer espécie de radical islamita. Se ele parecia saído do Maio de 68, apesar da "barba talibã",  já ela não escondia uma aparência assumidamente fundamentalista, não só pelo cabelo coberto, mas também pelo vestido quase até aos pés, acinzentado, e um casaquito numa espécie de renda de cor arroxeada, sobretudo atendendo ao espaço geográfico em que atualmente se movimentava. 

Súbitamente dirigiu-se na direção dele, agarrou no pacote que continha o "pó milagroso", e atirou-o para longe. Quando os nossos olhos se encontraram, reparei numa mancha branca junto aos meus joelhos, sobre os quais permanecia, foi através de uma núvem branca que suavemente se lhe juntava. Num primeiro momento pareceu assustada para, logo a seguir, passar a uma postura de alerta, física e mental, que quase me petrificou, não fosse o rapaz, desesperado, ter-se atirado para o chão na tentativa de apanhar aquela preciosidade que voava, aterrando bem à frente do meu nariz. Levantei-me e gritei-lhes no meu enferrujado inglês, que estava tudo bem, que não os queria magoar, que tivessem calma. Ele parecendo não me ter ouvido, ignorou-me e tratou de recuperar do chão tudo que lhe foi possível. Ela, perfeitamente estática, recuou para o meio da sala e ficou a aguardar o que eu faria. O rapaz, claramente abatido, acabou por se sentar onde estivera, colocar cuidadosamente dentro do pedaço de papel o que restava da heroína, pelo menos era do que eu pensava tratar-se, e recostou-se de uma forma que tornou a lembrar-me alguém e, então fez-se luz!, estava perante uma versão mais jovem do meu amigo Eurico! Ali estava o seu supostamente desaparecido filho algures no estrangeiro.Você é filho do Eurico! Clamei. Estranhamente calmo fitou-me, depois a rapariga, a quem disse, para meu grande espanto, para ir fazer chá e pronunciou um nome, ou marca, para mim totalmente desconhecido, e ela desapareceu, cautelosa, na cozinha. Aos poucos fui reconhecendo naquela atitude a bonomia do meu amigo e, mais tranquilo, instalei-me no sofá, olhando-o intensamente mas em silêncio, apelando às suas explicações. De facto voltara de Londres havia três meses, trouxera a sua namorada paquistanesa, mas nunca informara o pai. Estavam na manifestação quando o vira a entrar num café e, curioso, resolveu segui-lo, quem sabe ganharia coragem para lhe dar um abraço e apresentar-lhe Amina, assim se chamava a rapariga, depois também se estava a esgotar o dinheiro que trouxera de Inglaterra...Mas não conseguiu, sabia que tinha ido longe demais para recuar, ouvindo isto questionei-me a que se referiria, limitou-se a ficar para ali abandonado até o ver sair comigo, para logo nos separar-mos um para cada lado. Ainda não sabe explicar porquê, não me reconhecera, optou por seguir os meus passos, mesmo contra a opinião de Amina. Primeiro viu-me entrar numa agência de viagens, demorar-me por lá, e depois, pacientemente e a uma distância segura, até ao meu prédio. Aí chegado recuou a uma tarde acontecida mais de meia dúzia de anos atrás, quando o pai o foi buscar à escola que então frequentava, na companhia de um seu amigo igualmente professor que deixara exatamente naquele lugar, gastando o restante tempo de trajeto até casa a satisfazer a sua curiosidade relativamente aquele senhor de bom aspeto, e morador em tão seleta zona da cidade num edíficio certamente caro. Inteligente e necessitado, farejou ali uma qualquer possibilidade, pelo que, no dia seguinte bem cedo estavam de volta só para ver "em que paravam as modas". Enquanto dizia isto riu-se nervosamente, concerteza efeitos da ressaca que não o largava, para a rapariga que voltava com o meu bule preferido, tinham bom gosto, cheio de um líquido fumegante que tinha um sabor primeiro acre mas, aos poucos, ía deixando um rasto adocicado, e que, à segunda chávena, pareceu transportar-me para uma zona considerávelmente mais relaxante, amistosa, o que me levou a cumprimentá-la, merecendo o seu primeiro ainda que ligeiro sorriso. Ía-me explicando que durante estas duas semanas falara com o brasileiro do café à entrada do prédio várias vezes, para aquietar aquelas olhadelas furtivas, a anunciar perigo, recorrendo ao que de mim conhecia através do pai, mas pressentia que só ganhara tempo, o homem estava obviamente a aguardar o meu regresso para confirmar a sua história. Devia ser o caso, é que embora o rapaz não o soubesse, eu tinha-lhe dito para não me guardar pão durante quinze dias. Sentia-me francamente bem, quase deitado no sofá a ouvir e ver na maior das calmas aquelas duas criaturas que me tinham invadido a casa, quando dei comigo a perguntar-me, e mesmo assim como se de algo absolutamente normal se tratasse, que raio de chá será este?

 


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