O regresso ao Funchal fi-lo junto à costa, muito mais rápido, para além de evitar as montanhas, também graças aos inumeros túneis que engenhosamente perfuravam as que, mais pequenas, se sucediam a poucas centenas de metros do mar. Sempre que penetrava numa daquelas fantásticas obras, vias largas e bem iluminadas, não raras vezes em compridos troços de onde não era possível ver a faixa contrária, aberta num outro túnel algures ao lado com tudo o que isso implica em arte, engenho, e custos, como que me autotransportava para um outro mundo, pleno de alta tecnologia e consequente elevado índice de conforto. Infelizmente logo desmentido à duplamente crua luz do dia. Porque efetivamente agressiva quando explodia francamente luminosa mesmo depois de tão potentes luzes alaranjadas, mas sobretudo por com ela trazer a dura realidade, consubstânciada na evidente pobreza que gritava por aquelas encostas acima. Lembrei-me dos repetidos desastres devido às habituais enchurradas próprias de um clima semitropical, causados pelas sempre adiadas obras de sustentação de terras, ou pura e simples transferência daquela gente para lugares mais seguros. De certa forma a Madeira representava uma espécie de paradigma dos quarenta anos de democracia. Governada sempre pelo mesmo homem, um recorde em que Salazar é eloquentemente batido, que ganhou todas as eleições democráticamente, mas utilizando este conceito recorrendo à sua pior faceta, fazendo daquele território uma coutada pessoal, uma enorme autarquia, criando uma rede de amigos faustosamente recompensados, e valendo-se da endémica ignorância da população, criteriosa e cínicamente mantida com falsas promessas e obras de fachada, que alimentaram um regionalismo calculista, sustentado pela venda de votos ao poder do continente, com custos elevadíssimos a pagar sempre pelos mesmos, como agora se constata. Pude confirmá-lo já à noite, quando percorrendo a bela baía funchalense a pé, observei várias edificações claramente fruto do exibicionismo do poder, para os quais não faltou o dinheiro sistemáticamente negado aos mais necessitados, com o objetivo de os cegar com um sentimento bairrista de terceiro mundo, algumas completamente abandonadas e em avançado estado de degradação, mas que, ainda assim, terão seguramente servido para dar a ganhar muitos milhões aos donos de vivendas milionárias, que polulam por todo o lado em volta da bela cidade. Quem quiser dar uma lição sobre Portugal dos ultimos quarenta anos, no seu melhor e pior, dados inclusivamente confirmados pela estatística, mora ali a segunda zona com mais poder de compra do país, mas também alguns dos piores indíces de atraso e pobreza, pode fazê-lo na Madeira, ao vivo, a cores, misturado com milhares de turistas que sábiamente aproveitam o ar quase permanentemente morno, os preços baixos, e os humildemente simpáticos indígenas, de entre os quais em tudo se distingue o para sempre mais célebre governador, à boa maneira colonial britânica apesar de ser branco, mas nem por isso menos exótico, como até à bem pouco tempo a demonstrava desfilando disfarçado de animal selvagem durante o carnaval...
Consegui alterar o data do regresso e no dia seguinte rumei a Lisboa, posteriormente apanharia um comboio que me levaria praticamente até casa. Havia muito tempo que não ía lá, pelo que resolvi demorar-me um ou dois dias, depois se veria, aproveitando assim para dar uma volta e visitar alguns locais que, desde há muito, tinha curiosidade conhecer. Deslocando-me preferencialmente de metro, mas também em autocarros e, uma ou duas vezes, de táxi, percebi a enorme diferença que existe entre aquela cidade e o Porto. Um fosso que, ao contrário do que repetidamente os políticos no poder vão afirmando, tem vindo a alargar-se, e tratando-se da segunda cidade do país é fácil imaginar o resto. Basta circular por ali, cruzarmo-nos com as pessoas nas ruas, falar com algumas delas, para perceber o alto nível de urbanidade, para o bem e para o mal, daquela gente. Claramente sofredoras dos males e dos benefícios das virtudes, das grandes metrópoles não obstante a diferença de dimensão. É enorme a variedade entre as pessoas, provenientes de todos os lados do mundo, sente-se, a um tempo, o poder da presença do dinheiro, mas também a frieza feita pragmatismo no olhar e na atitude das pessoas, e, sempre a espreitar, uma legião de indigentes. Um ritmo claramente único no país, um trânsito infernal nas inumeras autoestradas e largas avenidas, algumas pejadas, porta sim, porta sim, de estabelecimentos das mais reconhecidas marcas globais exibindo preços absolutamente proibitivos. Foi também isto que nos trouxeram quarenta anos de liberdade, um centralismo feroz consecutivamente suportado pelo habitual jogo de interesses da meia dúzia de poderosos de sempre, mas agora obrigados a abrir mão de "dez reis de mel coado" para distribuir pelos lacaios da província, criteriosamente distríbuídos por partidos políticos no parlamento, ao primeiro sinal dísponíveis para "vender a alma ao diabo" em nome de um novo riquismo, arma de confronto de invejas com a família e amigos lá da terra. Afinal a repetição do que Camilo tão bem retrata em " A Queda De Um Anjo", mas agora elevado a uma potência que faz pensar, duvidar e temer pela solução de como sair desta situação.
Na impossibilidade de viajar naquele mesmo dia, foi logo na manhã seguinte que, de comboio, me pus a caminho de casa. Afinal acabara por cumprir as previstas duas semanas fora, tentaria alterar junto da agência de viagens algo que saísse do préviamente estipulado, pelo que foi com alguma satisfação que, ainda no taxi, descobri o meu prédio na paisagem. Não podia adivinhar o que me esperava junto à porta de casa após transpôr o lanço de escadas sómente a mim reservado.