Quando entramos com aquele homem naquele automóvel topo de gama, conduzindo de meias grossas nos pés após tirar as pesadas botas carregadas de betão nas solas, o mesmo que se adivinha brevemente por todo o lado, naquela noite já cerrada mas profusamente iluminada por potentes projetores sobre os alicerces de mais um monstro, tal qual esta sociedade que nos oprime, prontos a receber as toneladas que brotarão das tripas de centenas de botoneiras, estamos longe de saber o que nos vai acontecer. Ao longo de duas horas que virarão a sua vida do avesso a conduzir numa autoestrada plena de tantos outros como ele, aquele homem fará desta viagem a metáfora de toda uma vida de concentração total, quase exclusivamente focada em não ser para os filhos o que para ele fora o seu pai, que fugindo ao seu nascimento fê-lo sentir-se como um bastardo durante muitos anos, para só aparecer quando não devia. O último ato(?) de uma existência na incansável procura da perfeição, expiação da culpa que lhe foi inculcada à nascença, óbvio caminho para a criação de todo o género de dependências nas pessoas que o rodeiam, mais por um dívida de gratidão que por amor autêntico, impossível amar quem não se ama a si próprio, e fatalmente sujeita a uma falha que finalmente o obrigará a sair desse limbo e, via redentor paraíso ou destruidor inferno, para o bem ou para o mal, libertando-se e libertando os mais próximos, exceto os filhos que, tal como ele, carregarão a ferida pelo pai aberta para o resto das suas vidas.
O filme Locke, que decorre em tempo real, o que desde logo lhe confere uma verosimilhança impressionante, mas sobretudo servido por uma narrativa quase isenta de adjetivos, enxuta, e ainda assim poderosa o que diz muito sobre a intensidade deste argumento. Duas horas que passam a correr, sempre no fio da navalha, à beira do abismo físico, o risco de conduzir em piloto automático, e mental porque sujeito às piores pressões psicológicas das quais toda a vida fugira, agora a desabarem sobre ele todas ao mesmo tempo. Um assumido tudo ou nada de quem profundamente saturado, mais, ou menos, inconscientemente procura desesperadamente uma fuga. O mesmo grito de apelo à vida que o seu pai não quis ouvir negando-lhe assim uma existência equilibrada, chama agora por ele. Qual a sua escolha? Que destino cumprirá?