A primeira vez que fui a Paris em trabalho, 1983 ou 84, ao serviço de uma empresa têxtil para participar com stand próprio numa das mais importantes feiras de moda daquela cidade, tive oportunidade de ir ao Lido, um dos principais cabarets daquela cidade situado nos Campos Elíseos. Fomos comprar os bilhetes para o espetáculo da noite durante a tarde e, por mero acaso, enquanto estávamos a aguardar na longa fila para a bilheteira, saíram de uma porta até aí invisível porque cuidadosamente camuflada, em fila e ligeiras, umas quantas mulheres imponentes, pela sua altura, porte, beleza, mas sobretudo postura, onde sobressaía um indisfarçável ar de superioridade perante aquele imenso conjunto de pigmeus com ar assustado dos quais, desgraçadamente, eu fazia parte. A sensação que me invadiu colou-se-me à pele até...ontem. Na ocasião senti-me francamente intimidado por aquela visão do género feminino como eu não tinha nunca sequer imaginado. É que uma coisa é vê-las na televisão, no cinema ou em papel, outra é ser surpreendido por uma espécie de seres do outro mundo, autênticas bonecas, lindíssimas, verdadeiros monumentos na sua escultura perfeita e, ainda por cima, como que olhando através de nós, ignorando-nos como se fôssemos transparentes.
Ontem, mais de trinta anos depois portanto, vi um programa precisamente a propósito do Lido, e no qual era explicado detalhadamente todo o funcionamento do cabaret. Mais uma vez, como tantas outras mas muito mais dolorosas, constatei que quando conhecemos seja o que fôr a fundo, quando ficámos de facto a perceber a sua mecânica, o sentimento que passamos a nutrir pela questão em causa transforma-se em algo muito mais concreto onde, na maior parte dos casos, o medo não tem lugar. Sendo que, como é óbvio, hoje já não me assusto, como aos vinte e poucos anos, no contacto com qualquer ser humano, por muito sofisticado que seja, a verdade é que a descodificação daquela infernal máquina de fazer dinheiro, na qual as bailarinas, recrutadas por todo o mundo, têm que ter sempre, no mínimo 1.75m, (lá está...), o vislumbre pela sua vida particular, apesar de manterem aquela indiferença que só agora percebi servir para espantar assédios, bem como ter podido acompanhar os bastidores durante um espetáculo, como que me fez cair do céu aos trambolhões.
Ao longo daquela noite mágica nos longínquos anos oitenta, tudo aquilo remetia para o sonho. Quando imediatamente após nos sentar-mos à mesa para uma refeição divinal, à base da refinadíssima cozinha francesa, começou a ser atirado um fumo que cheirava agradávelmente bem, de seguida serem ligadas uns feixes de luzes verdes muito intensos, hoje sei que eram laisers, uns metros acima das nossas cabeças, para depois, milagrosamente, aparecerem a nadar ligeiramente abaixo dessa linha de luz, todo o tipo de peixes, todos super coloridos, sugerindo a luz a fronteira entre água a ar, estavámos submersos, portanto, sensação logo a seguir reforçada pelo incrível aparecimento de um barco, um bote, real, a boiar tranquilamente à tona e pleno de maravilhosas sereias, entrámos, entrei, numa outra dimensão. Naquele momento terei pensado, de olhar sonhador como o outro, já nem era preciso mais nada...Mas quando uma multidão de beldades semi-nuas desataram a deslizar ali meia dúzia de metros à minha frente, percebi que estava a viver um momento para a eternidade. Ontem, quando as vi durante os intervalos atrás das cortinas, desesperadas, desconjuntadas, algumas a vociferar impropérios mudos que se adivinhavam na urgência e desamparo das suas aflitas expressões, senti-as, senti-me, como a Cinderela que, após o último toque da meia-noite volta à sua triste condição de Gata Borralheira.