Saiu. Estava uma daquelas manhãs em que os deuses acordam bem dispostos. A escassas dezenas de metros do mar o único ruído que dele podia ouvir era um suave ronronar que fazia adivinhar uma calma maré vaza. A confirma-lo pairava no ar um perfume agridoce a maresia feito de algas, moluscos, e do calor morno que começava a exalar do contacto entre a água e a areia, que aumentava à medida que se aproximava da praia. Quando transpôs a última duna aconteceu a epifania do costume mas muitas vezes potenciada pelas circunstâncias que vivia, pela decisão que acabara de tomar, assumir-se como companheiro de uma mulher a sofrer de uma doença altamente restritiva, pelo menos em alguns aspetos, de uma vivência verdadeiramente livre, e do filho que transportava no ventre, sobre o qual o único facto que ambos tinham como certo era de não ser ele o pai.
O sol já proporcionava uma agradável sensação de conforto ao bater-lhe nas costas, sentado a meia dúzia de metros do mar numa praia deserta. Passavam poucos minutos das oito da manhã pelo que, para além dos provocados pela natureza, a ausência de barulhos era quase total. Um silêncio que o fez viajar agora já não pelo passado mas projetando o futuro. Viu-se naquele mesmo sítio a brincar com um rapazito de cabelo vermelho e inúmeras pequenas sardas no rosto, que chutava uma bola e o desafiava dançando em frente dela na promessa da mais desconcertante das fintas. Ou seria uma menina com uns inacreditávelmente firmes totós numa farta e igualmente acobreada cabeleira, que bamboleva as pequenas ancas num precoce e perigoso movimento sensual, tentando manter em movimento um arco maior que ela sob o olhar feliz da mãe que nela se revia?
Quando regressava caminhando ligeiro, contagiado por um doce entusiasmo que lhe parecia brotar de tudo em volta, ansioso por o transmitir a Laura que imaginava mergulhada em pensamentos ainda sombrios, sim porque deles rápidamente se livraria!, reparou num vulto na varanda da casa virada para o mar e que não lhe parecia ser ela. Mais próximo pôde ver que assentava ambos os braços, quase pelos cotovelos, no corrimão, com a cabeça ligeiramente descaída numa enigmática atitude de abandono. Desistindo de conjeturas pousou os olhos no chão e aumentou ainda mais o ritmo a que caminhava. Quando chegou em casa, antes olhara para a varanda agora deserta, e entrou no quarto, deparou com Laura sentada no sofá ao canto. Vestia o seu próprio robe turco, restos de uma longínqua viagem e de um hotel de luxo, o qual, imaculado, mais realçava a sua palidez extrema por todo o corpo, só manchada por uma marca rosada de um dos lados do rosto e um fio de sangue seco proveniente do nariz que se ía desvanescendo até ao pescoço. Toda a sua linguagem, física e facial, transmitiam um misto de alívio e insuportável tensão, esta só legível nos olhos, quase deitada no sofá numa posição que permitia vislumbrar-lhe parte dos seios e os pelos púbicos da cor da enorme cabeleira que dominava o quadro, como que iluminando aquele conjunto irreal. Uma deusa mitológica!
Quando conseguiu libertar-se daquela imagem muda que o hipnotizava, e como resposta ao turbilhão de perguntas que lhe afluíam confusas à mente, apercebeu-se de uma silhueta escura para lá das portas de vidro, translúcidas na sua parte inferior, de acesso à varanda. No chão, no meio de uma poça de sangue, jazia o exnamorado, a minha, a nossa? "besta negra", com aquilo que reconheci ser a minha faca de cortar papel, um magnífico sabre miniatura com o punho cravejado de pedritas multicolores, normalmente esquecido em cima da secretária no quarto ao lado que utilizo para guardar os livros, ler e escrever, e que num surpreendente acesso de memória recordei com prazer a cortar papel emitindo aquele som definitivo e libertando uma ténue núvem de pó por ser reciclado, afundada algures entre duas costelas logo abaixo do coração. Não tinha pulsação! Estava morto! Laura observava-o encostada à ombreira das portas de correr sem uma pinta de sangue a denunciá-la, fora um golpe limpo! Quando começou a falar fê-lo devagar, pausadamente, olhos postos ora lá longe num horizonte que não via, ora bem fundo nos seus olhos perplexos e assustados, ali sentado ao lado do cadáver, paralisado, incapaz de proferir uma palavra. Seguiu-nos até ao médico que por coincidência é seu amigo, e provando-lhe que nos conhece conseguiu convencê-lo a dizer o que se passa comigo, menos a parte da seropositividade. Veio aos gritos e ameaças reclamar o filho que diz ser seu...sim Ivo...voltei a deitar-me com ele... uma vez, num dia de fraqueza. Como aconteceu depois daquilo em Paris vinguei-me dizendo-lhe que estava infetado com sida. Furioso deu-me um murro. Fugi para o escritório, peguei na faca e quando ele entrou dei comigo a espetar-lha no peito. Começou a gemer de dor, a cara de espanto! disse para si própria. Foi a cambalear até à varanda e acabou por cair. Seguiu o pingos de sangue nos quais só agora reparava e que confirmavam o que ela lhe dizia, levantou a cabeça até encontrar os seus olhos suplicantes, acordada de um pesadelo que descobria real, de onde jorravam lágrimas e justificações e correu a abraçá-la.