semtelhas @ 13:46

Sab, 18/01/14

 

Levantou-se e conduziu-me pela mão no sentido da casa, mas em vez de entrar-mos continuamos até uma espécie de estufa, escondida pelo edificío maior, na realidade um anexo onde havia um fogão a lenha, um armário grande, alto e largo, uma mesa de madeira comprida ladeada por dois bancos corridos, e um sofá decrépito mas com aspeto confortável, onde nos deitámos e fizemos a vontade a dois corpos que se atraíam irrevogavelmente, desta vez tranquilos, com todo o tempo e certezas do mundo. Ainda deitados, acariciando-nos suavemente, em silêncio observáva-mos a luz que entrava pela duas enormes janelas, filtrada pelas inúmeras plantas que por elas acima trepavam presas em fios que formava uma teia entre pregos e originárias numa fileira de vasos, cada um com quase meio metro de diâmetro, estratégicamente encostados áquela parede virada a sul. Apesar de lá fora estar frio, ali o ambiente era morno, aquecido pelos vidros ensolarados, e misterioso, quase místico, naquele esverdeado luminoso, ao qual se juntava um odor a terra fresca proveniente dos plantas recentemente regadas. Os meus pais práticamente já não entravam aqui, começou por dizer interrompendo o sonho em que eu vogava, mas ao princípio fizemos aqui muitos churrascos para a família toda e amigos. A partir de certa altura passou a funcionar mais como meu refúgio das discussões que aconteciam ali, apontando com o queixo para a casa. A Lucília, a empregada, passa por cá dia sim/dia não, arruma lá dentro e vem aqui tratar das plantas, está connosco desde sempre e, muitas vezes, fez de minha mãe. A qualquer momento vai aparecer por aí, se é que já não veio, espreitou foi-se embora, e eu ainda não sei o que lhe hei-de dizer...mas acho que ela deve saber. Aconcheguei-a mais a mim e assim nos mantivémos caindo num sono profundo e repousante após dias alucinantes durante os quais pouco havíamos descansado. Despertá-mos sob uma luz menos brilhante, já alaranjada. Tive um sonho esquisito, não cheguei a perceber se era um rio ou areia movediça...os meus pais a afundarem-se ao mesmo tempo que peixes, piranhas? os atacavam, tudo vermelho...respirou fundo, não consigo identificar o lugar, mas era um sítio quente e húmido, sorriu lançando-me um tristonho olhar malicioso para desanuviar, deve ter sido por causa deste ar que aqui se respira. Talvez na Amazónia...fui lá pelo jornal fazer uma reportagem a propósito dos "sem terra", quando eles invadiram e ocuparam durante algum tempo aqueles terrenos, uma pequenissíma parte de centenas de hectares que o governo mandou plantar de soja para a produção de biodísel, lembras-te? Perfeitamente, respondi-lhe, a quantos mais sítíos exóticos o jornal te mandou? Também estive em Kabul, em Kinshasa...sabes? Fitando-me, acho que isto foi um sinal! Quanto mais falo em lugares longínquos mais entusiasmada fico! vamos viajar! tratámos de tudo, primeiro o dever e depois o prazer, e depois arrancá-mos, que achas? E voltou a pousar em mim aquele olhar que, a um só tempo, questiona e decide, É verdade que não ando muito ocupado, nada mesmo, mas também o é que que atualmente vivo dos parcos rendimentos do que fui acumulando ao longo dos anos...não me posso esticar muito, ou melhor, nada, só me tenho aguentado debaixo de uma disciplina rigorosa sobre os gastos. Interrompeu-me, Não te preocupes, conheces-te uma gaija rica...acho...e lançou a primeira gargalhada que lhe ouvi, franca e sonora, daquelas que contagiam, só possíveis em pessoas ainda não irremediávelmente derrotadas pela vida, que acendem em si, e a quem por elas é atingido, uma luz de esperança. Comigo, a somar à paixão por aquela mulher que em mim crescia tão indomável quanto improvável, funcionou como o insuflar de uma nova alegria de viver, como se todos os ensinamentos, conclusões, toda a sabedoria acumulada ao longo de décadas de experiência na luta diária, e razoávelmente vasta do ponto de vista cultural, nomeadamente a livresca, de repente tivéssem caído por terra, reduzidos a zero, perante um misto de entusiasmo e serenidade que jamais pensara voltar a sentir.

 


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"O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo."
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