Estão por estes dias a completar-se exatamente vinte e cinco anos sobre uma viagem que fiz ao Canadá e aos Estados Unidos da qual guardei memórias indeléveis.
Corria portanto o glorioso ano de 1987, o tal da conquista da primeira taça dos clubes campeões europeus pelo FCP, e o segundo do mandato de Mário Soares enquanto presidente da républica após uma eleição em que muito mais esteve em causa, e nas quais, por uma unha negra, os portugueses escolheram, em definitivo, os turbulentos caminhos da democracia.
A economia do mundo ocidental estava em pleno crescimento e Portugal ía na carruagem. Os investimentos multiplicavam-se e foi com estes na mira que rumámos à América a convite de um importante fornecedor, pelo qual fomos escolhidos dado o potencial que vínhamos demonstrando posicionando-nos como uma das mais promissoras empresas do setor a nível europeu.
Começámos por Montreal no Canadá, onde permanecemos escassos dois dias, pelo que guardo sómente a imagem de uma cidade super moderna, onde já proliferavam os centros comerciais, nessa ocasião a aparecerem em Portugal, muitos deles largos metros abaixo da superficíe terrestre para fugir ao muito frio que domina por aqueles lados, e da distância enorme que, quando chegámos, tivémos que percorrer entre o aeroporto e os limites da urbe, primeiro contacto com a realidade mais sensível, tudo grande.
Entrar nos EU foi quase como quem vem da aldeia para a cidade. Incrível como era notável a diferença, pelo menos por aquela fronteira. Começa logo pelos policías, muito mais "cowboys", interventivos e exigentes na revista, nas papeladas, na forma como nos perscrutavam com o olhar. Mas uma vez ultrapassado esse momento foi como se acabássemos de passar num exame, e, uma vez aprovados, é a liberdade.
Já desde Montreal que viajávamos de jipe, e assim continuámos até ao Alabama, o estado mais a sul que visitámos. Rodámos entre as montanhas Cherokee, vimos reservas de índios, passámos por cidades tão emblemáticas como Nashville onde visitámos um enorme estabelecimento de diversões multiplas da cantora country Dolly Parton, o qual aliás descobrimos uns bons kms antes, porque aquele exibia no telhado uma enorme imagem da artista onde sobressaiam certos, e não menos avantajados apêndices da senhora.
Continuámos por ali abaixo, as noites dormidas à beira da estrada naqueles típicos móteis norte americanos que só conhecia dos filmes e onde nos eram servidos pequenos almoços que mais pareciam banquetes. Ainda muito jovem comia e bebia até chegar com o dedo, o resultado seria bem visível umas semanas e alguns quilos depois. Até porque os jantares eram sempre uma orgia de bifes com uma inacreditável largura de ombros, lambuzados pelos mais fantásticos molhos e empurrados por várias saborosas Budweiser, a cerveja oficial lá do sítio. Durante o dia fazíamos por merecer os ditos repastos visitando inúmeras fábricas, das quais, entusiástica e quase febrilmente ía sacando ideias para aquilo que queríamos fosse o implantar de uma revolução na nossa. Dessa parte retenho sobretudo a noção de que as pessoas ganhavam salários relativamente baixos, mas que podiam aumentá-lo muito em função do que produzissem. Uma política de prémios. Também observei pela primeira vez no terreno ideias sobre o "just in time", teoria a propósito do controle de stocks, e de "defeito zero". Foi uma saga que durou duas semanas e que terminou em Charlotte, onde como despedida, os americanos nossos guias que nos acompanhavam desde o princípio, nos ofereceram um jantar tardio numa daquelas casas onde, às tantas, as empregadas que nos serviram a refeição, já no fim desta e acompanhadas por música ao vivo, saltaram para cima da mesa que rodeámos e, em troca de notas de dólares que atrapalhadamente íamos prendendo nos escassos trapinhos que as cobriam(?), nos brindavam com danças mais ou menos provocatórias, durante as quais foram escostando-nos ao nariz certas proeminências...sendo eu o mais novo, logo o mais visado pelas meninas, aquilo foi um gozo para os outros e para mim um delírio.
O melhor ficou guardado para o fim. Restáva-nos uma semana para o regresso e, já que estávamos ali...foi passada em Nova Iorque. Os anos oitenta daquela imensa cidade foram loucos, e isso, mesmo em tão pouco tempo, foi sensível. No Harlém, dentro de um WC, um negro a injetar-se e nada incomodado com a visita lá continuou calmamente vendo-me a fugir dali; a vertigem da visão, subida e olhar do alto das torres gémeas; reviver um sem número de cinematográficos episódios no Empire State Building; o assustador movimento e dimensão da Chinatown, ou de Little Italy onde fui atingido pelas vibrações da máfia; descer a Brodway ladeado por dezenas de casas de espetáculos já há muito presentes no nosso imaginário; percorrer a 5ª Avenida onde nos sentimos no topo do mundo da riqueza e do luxo dos resplandescentes hóteis de cinco estrelas com dezenas de limousines à porta; ser esmagados pelo Rockfeller Center, Wall Street ou toda aquela zona de onde se pode ver a Estátua da Liberdade, foram pormenores numa sensação mais global que nos envolve. Tudo tinha começado quando nos hospedámos, já bem noite dentro, num trigésimo não sei quantos andar de um hotel da 42ª street, cujos quartos tinham uma das paredes, inteiramente de vidro, virada para a Brodway que fervilhava como se fossem oito da noite. Pelo meio fomos ver um célebre espetáculo musical, Oh Calcutá, no qual as várias dezenas de artistas atuavam despidos; fizémos refeições em locais surreais, e, acima de tudo, pudemos sentir cultura por todo o lado, como quem a respira. Acabámos a percorrer longamente o inenarrável Central Park, paradigma do espaço para a prática da saúde fisíca e mental, e como os novaiorquinos o comprovam esgotando ringues, piscinas ou bibliotecas que por lá existem, e onde quase cheguei a trocar umas impressões com o meu amigo Woody Allen.
Das tais sensações. Na provincía tinha ficado com a ideia que toda aquela gente, desde os donos das fábricas, até às mais simples rapariguitas que trabalhavam nas máquinas, e como!, vi uma que o fazia com os mãos e os pés, uma campeã em prémios, fazia parte de um imenso departamento comercial que é aquele país, todos vendiam qualquer coisa, o sistema capitalista no seu estado mais puro. Já em Nova Iorque o que pairava no ar era uma espécie de super confiança, noção de teto do mundo, de cosmopolitismo ímpar, de ritmo infernal sem tempo para pieguices ou fingimentos, o pragmatismo em toda a linha, uma espécie de corrida sempre em frente que hipnotizava e atraía irresístivelmente. Era óbvio o sentimento de farol da humanidade.
Hoje, passado um quarto de século, é muito mais fácil detetar os podres no meio de todo aquele brilho, mas que no momento foi absolutamente fascinante, e que parecia que tudo aquilo fazia sentido, lá isso parecia.
Pergunto-me, como conseguem os residentes lidar com tanto ruido? Mas que gostava de ir ao barulho, ah gostava!