
O livro, O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, suscita uma mistura de sentimentos.
Foi de uma grande habilidade pôr na cabeça e na boca de uma criança de quinze anos tudo aquilo que pensavam, pensam, muitas daquelas pessoas que tiveram que sair, ou fugir, das antigas colónias portuguesas aquando do 25 de Abril de 1974.
Tal como em vários aspetos ao longo do livro, também este facto é ambivalente. Se por um lado "desresponsabiliza", por outro dá outra frescura e autenticidade ao relato.
A dúvida maior que persiste e subsiste nesta obra é, qual é o sentimento mais forte que sobra no coração dos retornados das antigas colónias? Mágoa ou compreensão?
Não é possível abstrairmo-nos da pessoa autora desta obra. Passou relativamente pouco tempo sobre os factos e, todos nós tivémos, e temos, alguém que viveu a mesma situação. Quanto a mim tenho-os desde aquele que passou meses à janela do hotel Infante Sagres (cinco estrelas) no Porto, com medo de sair à rua, e a alimentar-se básicamente da liamba que trazia a encher uma das malas, até a outros que, suspeita-se, vieram com as baínhas das calças bem fornecidas. Contam de acampamentos feitos no meio daquilo que tinham sido magnifícas salas comuns, e de onde os tacos eram arrancados para fazer fogueiras, ali mesmo, onde ardiam lentamente quilos de droga. Mas também dos bons tempos, do espaço, da terra, do sol, da abundância e da docilidade, filha da fraqueza de espiríto dos indigenas.
Sempre que os ouvia e posteriormente, ao longo destes anos, me pareceu que, os que foram para lá e não os que lá nasceram, ou que para lá foram muito pequenos,"esqueceram" o que tinham deixado, a pobreza, o frio, a pequenez em toda a linha mas, sobretudo de horizontes, mesquinhez em que assentava o regime e que dela sobrevivia. Foram capazes de dar o passo em frente naqueles tempos iniciais e, mais tarde, após a revolução, foi com essa mesma força que ajudaram a levantar o país. Outros, com menor capacidade para arriscar, por aqui ficaram a comer o pão que o diabo amassou, e, apesar de tudo, a guardar um lugar para quando eles voltassem, inconscientemente mas, também, objetivamente. Como se costuma dizer, ninguém é bom juiz em causa própria.
A obra ressente-se, para o bem e para o mal, desta falta de distânciamento que tira discernimento mas dá profundidade e espessura ao relato. A pureza do talento da autora está presente naquela ideia de perda, quando deixámos de pensar numa coisa de cada vez, quando, com a idade, as ideias começam a vir agarradas umas às outras, perde-se pelo caminho a autenticidade presente na primeira, como se nada seja de facto real ou tenha interesse. Acontece que este sentir, esta perda de inocência, nada tem de exclusivo na criança a quem foi retirado aquele chão africano, foi concerteza violento, mas nas crianças este é um conceito muito complexo, desde logo porque também a sua capacidade de readaptação é muito maior. O que de melhor tem esta obra, no que afinal é igual ás melhores, podia estar presente num outro qualquer relato.
A autora cresceu em África, a sua personalidade foi moldada pelo ambiente em que viveu e também pela educação que lhe foi transmitida pelos seus ascendentes. Tal como todos nós é fruto dessas duas componentes, e a educação que se recebe é o fator primordial para um crescimento saudável, há um sem número de crianças que viveram em ambientes extremamente adversos e são pessoas que, graças aos ensinamentos que lhe foram transmitidos, são equilibradas e felizes. Esse é o principal legado que lhes foi deixado.
Curiosamente vivemos hoje uma situação que tem, no essencial, algumas semelhanças com aqueles tempos. Algumas porque se o que leva as pessoas a partir é a mesma ambição por uma vida melhor do que era provável terem no seu país, e que a esmagadora maioria por cá continua a fazer o seu melhor, também é verdade que se acabou o império, esse paraíso de riquezas e mãos para toda a obra. Cantam-se agora outros paraísos. Na verdade não existem, como nunca existiram. Por isso hoje como ontem, sentimentos como a ambição, o empreendedorismo, a capacidade de risco, fazem tanto sentido quanto a necessidade que temos de evoluir. A grande questão continua a ser como, e para quê. Como sempre, só sairá com sucesso dessas aventuras, durem elas o que durarem, quem as alicerçar em objetivos bem definidos, claramente assumidos e acima de tudo positivos. Ter como legado uma educação que defenda como mais importante o respeito e fazer-se respeitar é meio caminho andado.
De volta ao livro, O Retorno, se quem o lesse fosse alguém que nada tem haver com o seu conteúdo, concerteza diria tratar-se de uma excelente obra, cheia de ritmo, da qual é dificíl levantar os olhos, podendo fácilmente ler-se de um só fôlego. Acontece que se lida por portugueses fala para uma grande maioria deles, dos quais muitos não se sentirão muito bem na fotografia porque sentem que enquanto povo, estão a ser injustiçados.