Viagem ao Fim da Noite, de Louis-Ferdinand Céline, é uma viagem dificil.
Céline conduz-nos através das trevas da guerra, da promiscuidade do colonialismo, da desumanidade das sociedades desconhecidas e, acima de tudo, pelos recantos da miséria fisica e da pobreza de espirito, reinante entre os mais desfavorecidos da sociedade francesa das primeiras décadas do século passado. Pessoa profundamente descrente na existência do minimo vestigio de grandeza, ou bondade, na natureza humana, revela a condição desta como algo entre a sobrevivência, o desespero e a mentira. É verdadeiramente penoso caminhar por tais caminhos, ver por aqueles olhos. Trata-se, no entanto, de um texto, em si mesmo, arrebatador de tão profundo e honesto.
Na guerra os verdadeiros inimigos são os nossos pares. É aí que se revela toda a sua capacidade de trair, de fingir, de roubar. A enormidade do seu egoísmo. A luta pela sobrevivência, a qualquer preço, revela a existência de dois (2) tipos de homens, os fracos, primeiros a morrer, e os indignos, capazes de tudo para resistir. A prova inquestionável do quão baixo um homem pode descer.
Nas colónias em África marcou-o o relaxamento, permissividade, a oferta à promiscuidade, numa palavra a fraqueza ou a falta de dignidade dos indigenas. Sempre e para sempre, mergulhados numa atmosfera quente, húmida, convidativa aos mais jocosos e pervertidos jogos do corpo e loucuras da mente, e origem de todas as doenças emanantes de cheiros fétidos e só agravadas pelas águas pútridas, aquele é um mundo em decomposição e regeneração doentiamente contínua.
No novo mundo (EUA) só descobriu frieza, racionalismo e calculismo. Os indigenas, agora colocados nos antípodas dos africanos, sofrem de excessos na limpeza e na preocupação de manter as distâncias. Até no olhar. Uma experiência numa pioneira fábrica de automóveis de Detroit, leva-o a sentir o calvário das tarefas repetitivas, a exploração, o despertar do consumismo e os maleficíos da rotina. Pressentiu o espalhar do veneno resultante e os previsíveis resultados na sociedade. Profeta ou visionário?
Mas onde Céline mais se detém é na dissecação da sociedade parisiense dos anos 20, 30, e 40. E, o que ele relata, não é bonito. Médico de profissão, tem a possibilidade de ver e, literalmente, apalpar, todos os podres da situação. Para além da generalizada dessiminação dos mais variados tipos de doenças, provocadas pela fome e pela miséria é, ou pela falta de princípios, pela manha e mentira dominantes, ou enfim pela degenerescência comum que este amargurado homem nos leva. À falta de educação e saúde as pessoas podem tornar-se autênticos bichos, capazes de tudo para sobreviverem. Com educação e saúde não querem outra coisa que não seja explorar e enganar o seu semelhante para, com isso, poder viver à grande e à francesa, lá está, sem que, para isso, tenham que mexer uma palha. Ou seja, outro tipo de bicharada.
Ler este texto é como mergulhar num muito fundo lago escuro, cheio de algas viscosas que, volta e meia parecem colar-se-nos no corpo e na cara e, à superficíe do qual, repetidas vezes temos que subir para respirar e ganhar alento. Porque, mais para uns que para outros, de um espelho se pode tratar, convém, nessas viagens à superficie, à claridade do dia, não ter pressa, encher bem os pulmóes e arejar as ideias.
By Guy Laramee