Um dia destes, numa daquelas ocasiões que quando olhámos vemos, reparei num senhor algo decadente ali à minha frente. Estava ao espelho.
Confesso que fiquei um tanto chocado quando notei alguma frieza nuns olhos agora sempre ligeiramente aguados e num ardor quase constante, percebi a velhice a avançar na pele das mãos enrugada e plena de manchas, vi os músculos a descair nos ossos, deixando o esqueleto cada vez mais a descoberto, a barriga já de dimensão indisfarçável não obstante o exercicío, as brancas a avançarem sem piedade, idem nos pelos da barba, bem como uma quantidade inusitada destes a crescer nos sítios mais insuspeitos.
Desde esse momento de verdade, tenho estado atento a outros sintomas. Foi então que comecei a reparar numa alarmante repetição de expressões como, se chegar lá; de atitudes como uma certa desvalorização do que me rodeia, como que já não constítua novidade; a cada vez maior dificuldade em colaborar, ainda que compreenda e chegue a aceitar, a arrogância, a presunção, a violência ou a vaidade fútil; alguma condescendência perante situações que mereceriam outra postura; e mesmo, em certas ocasiões, uma tentação para a desistência face à evidente(?) impossibilidade de mudar seja o que fôr.
É certo que o motivo para esse estado de espiríto tem razões bem reais: começarem a morrer-nos pessoas mais frequentemente; a cada vez maior incapacidade de contrariar rotinas; as doenças que começam a apertar o cerco; o descodificar boa parte do que nos rodeia passando a ver tudo a preto e branco; sentir que a maior e melhor parte da caminhada já ficou para trás; a crescente impossibilidade de manter, quanto mais potenciar os prazeres da vida; a imparável perda de energia; perceber que a inexorável marcha do tempo jamais permitirá corrigir o que se fez de errado; o medo do sofrimento, aqui tão perto; enfim o cada vez mais próximo confronto com o fim de todas as dúvidas, única verdadeira razão de viver.
Perante um certo olhar, silêncioso, que os mais jovens pousam sobre nós, que grita a constatação da nossa decadência, há obviamente diferentes possibilidades de agir: em casos limite precipitar a desenlace; deixar andar, mantendo os serviços minimos até à estação final; ou entender que esta não é mais que uma fase num processo em curso, nas quais sempre existe a verdade...que se vai alterando de umas para as outras. Como poderia ser de outra maneira?
Poderei comprová-lo se tiver a possibilidade de reler estas linhas daqui a dez ou vinte anos, como me irão parecer ingénuas!
Na sequência do lançamento de uma associação em prol da investigação do cancro, no Porto, Manuel Sobrinho Simões, conhecido investigador nesta área, afirmou algo profundamente preocupante: dentro de dez anos metade da população portuguesa sofrerá de, pelo menos um cancro (o sublinhado é meu).
Aparentemente dizia-o para reforçar a convicção de que, ao contrário do que atualmente acontece, não irá faltar dinheiro para investigar, situação aliás que, de entre os nossos pares, só se passa em Portugal, informou.
Apesar de não conhecer os números atuais, esta previsão esmaga-me. As implicações que esta circunstância tem, caso se venha a verificar o previsto, são avassaladoras. Estou completamente incapacitado para as avaliar do ponto de vista de qualquer das áreas envolvidas nestas matérias, médica, logística, económica, etc.,etc., no entanto, tratando-se de números tão arrasadores, parece-me ser do senso comum a enorme magnitude do problema.
Foi também do dr. Sobrinho Simões que, há uns tempos, ouvi da grande probabilidade de muitos dos cancros tenderem a tornar-se doenças crónicas dado o enorme avanço da investigação e dos fármacos. Se juntarmos a este facto o de ele, eventualmente, se estar a referir também a quem tem a terrível doença sem disso ter conhecimento, então talvez dê para começar a assimilar a sua afirmação sem entrar em pânico ou depressão.
Ouvi várias vezes este médico por quem tenho enorme admiração, sobretudo pela forma absolutamente desempoeirada como se apresenta e com todos interage, e pela paixão total que diáriamente demonstra pelo seu trabalho. Na verdade um amor ao qual se dedica sem limites. Acredito que também por isso tenha proferido assim desabridamente tão assustadora profecia. O seu objetivo terá sido fazer estremecer quem pode mexer cordelinhos, agitar consciências. Por outro lado ele é mesmo assim, frontal e direto...
Encontrei a salvação um bocado abaixo no jornal: há duas maneiras de bloquear no nosso cérebro uma memória indesejada, pela tentativa de puro e simples bloqueio, ou substituindo-a por outra mais agradável quando por ela formos assaltados. Em qualquer dos casos o objetivo é bloquear-lhe o acesso ao consciente.
Quanto a mim, sempre que a memória desta notícia tentar escapar do subconsciente e espreitar à esquina do consciente, logo me vou pôr a imaginar que o bom dr. Sobrinho Simões alcançou um êxito ímpar com a sua associação, mesmo o nobel da medicina, para o qual muito contribuiu alguém que generosamente abriu os cordões à bolsa. O sucesso chegou ao ponto de lá terem descoberto tão miraculosos fármacos e acertados tratamentos que, em dez anos, diminuiram para metade o índice de mortalidade por cancro em Portugal.
Primeiro e principal sentimento sacrificado por quem cometeu grandes genocídios.
Dizia uma estudiosa nestas matérias, particularmente das acontecidas durante o séc. XX, como o holocausto ou os milhões de vítimas dos gulags, que os agressores só conseguiam exterminar tanta gente porque anulavam, à partida, a capacidade de comungar qualquer tipo de sentimento com os agredidos, ou de se colocar no lugar deles, um universo muito próprio onde não havia espaço para qualquer espécie de compaixão. Para isso eram criadas motivações fortissímas, de natureza, no caso dos judeus, política, no dos russos. Só assim se explica a frieza e o calculismo com que se constroem câmaras de gaz para mais depressa eliminar e fornos crematórios para rápidamente fazer desaparecer, tanto um caso como o outro tiveram origem em problemas muito práticos, de eficiência, rapidez e sanidade. O caso do genocídio promovido por Estaline avançou por processos mais básicos, mas mais por questões relacionadas com o nível de desenvolvimento da sociedade russa da época, quase medieval, do que com qualquer laivo de maior ou menor humanismo.
Ouvindo estas reflexões é impossível não ver um certo paralelismo com o que atualmente sucede no mundo ocidental desenvolvido. O materialismo pode e manda pela mão dos economistas, provocando uma desenfreada corrida ao Ter, em absoluto desprezo pelo Ser, e que tem esvaziado a sociedade dos tais valores que, como escrito acima, tem sido largamente comprovado ao longo dos tempos, são o garante minímo do respeito pelos mais frágeis. Um mundo de tecnocratas com tanto de ricos e poderosos como de vazios de valores, insatisfeitos e, consequentemente, vingativos e violentos.
Focando ainda um pouco mais em aproximação à realidade do nosso país, não vai muito tempo discutia-se ao mais alto nível de decisão, a pura e simples exclusão dos programas escolares de disciplinas como História, Filosofia ou Cidadania, uma perda de tempo, diziam. Que viva a Economia, os cursos práticos, e a Matemática (quando abordada no pior sentido). Seria como prescindir do esqueleto num corpo humano, uma fatal gula por carne.
Outro aspeto assustadoramente comum entre a elite nazi e alguma da atual, é o alto nível de educação e cultura. Grande parte dos principais torcinários das SS, os mandantes, os cérebros, eram, por exemplo, grandes melómanos. E o que pensar das estatísticas que mostram que a pior violência doméstica é praticada no seio das classes sociais mais altas? Ou seja, mais uma vez a inteligência ao serviço do calculismo, da frieza, da crueza do atingir o objetivo mesmo que o preço seja ter que passar ao largo de qualquer resquicío de consciência humana.
O momento mais arrepiante das considerações da referida estudiosa, foi quando, de passagem entre duas ideias, deixou escapar: concerteza que vamos voltar a passar por grandes períodos de conflitualidade, se calhar não iguais...
Se calhar, disse a senhora. Para que não calhe talvez seja preciso deixar de reservar os nossos melhores sentimentos exclusivamente ao gato ou ao cão, ao ouvir as mais tocantes músicas, aos mais eloquentes filmes, aos mais visionários livros. É demasiado fácil. Talvez esteja chegada a hora de quem manda descer ao povoado. Como escrevia Primo Levi em Se Isto É Um Homem, que quando chegou a Auschwitz sentiu nojo pelos futuros companheiros que libertavam um cheiro nauseabundo e comiam o que apanhavam do chão, e que passados quinze dias, também ele já na mesmas circunstâncias, se sentiu próximo daqueles que havia poucos dias não passavam de abjetas criaturas. O milagre da empatia. Será preciso chegar a tanto?
Por coincidência tive oportunidade de ver e ouvir no mesmo dia, ontem, dois homens muito ligados ao fenómeno.
Julian Assange, um pirata informático, mostrou ao mundo, via Wikileaks, por que linhas se cosem, muitas das atividades politícas, económicas e sobretudo militares, por esse mundo fora. Num primeiro momento teve o cuidado de se aliar a alguns dos principais jornais de todo o globo e, tendo todos concluído que a divulgação das informações bombásticas não iriam provocar danos colaterais, leia-se represálias sobre as fontes, um belo dia pela manhã a bomba explodiu em todo o mundo. O que aconteceu depois, ser completamente abandonado ao seu destino, é muito mais obscuro. Os visados pelas noticías agarram-se a uma eventual agressão sexual de Assange sobre duas mulheres, ainda por provar, os seus exaliados acusam-no de ter rompido o acordo inicial de não expôr inocentes, ao revelar ao Times (jornal que não fazia parte do grupo inicial) dados, que este jornal viria a publicar, e que resultaram no assassinato de alguns informadores do Wikileaks. A dar razão a este argumento a reação da CIA que, após as referidas mortes (e de que podem muito bem ter sido os responsáveis, digo eu), veio acusar Assange e quem o ajudou a ter as mãos sujas de sangue. A realidade, hoje, é que Julian Assange está refugiado na embaixada do Equador no centro de Londres, e que ninguém lhe augura grande futuro.
Paulo Morais é um antigo vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, para além de mais uma série de atividades e canudos, num vasto curriculo. Mas onde este homem mais se tem notabilizado é nas permanentes denúncias de abusos de poder, atividades ilicítas, desvios de verbas públicas, etc., etc.. numa palavra, corrupção. Já o tinha lido e ouvido várias vezes mas sempre em circunstâncias diferentes, de trabalho. Ontem, no Cinco para a Meia Noite, o ambiente era descontraído, ou devia ser. O que mais me impressionou foi a luta do homem, com ele próprio, para insuflar de descontração o seu discurso, quando o mesmo, para fazer sentido, tem que ser, e é, daí o seu desconforto, intrinsecamente fomentador de um estado de revolta. A bonomia com que as outras duas pessoas presentes, Nilton e Pacman, tentaram embrulhar aquilo também foi tudo menos natural, sentia-se o constrangimento provocado pela crispação dissimulada. Convenhámos que, nos dias que correm, divertirmo-nos ouvindo e lançando umas larachas sobre uns tipos que há anos nos vão ao bolso, ainda por cima se riem, enquanto nós cada vez penamos mais, não deve ser fácil. Diz Paulo Morais que, se pudésse, a primeira coisa que faria, seria mudar as leis que, por avassaladora e doentia inércia, deixam escapar esta corja, meia dúzia que cozinha a seu belo prazer o seu fausto repasto, deixando na mesa escassa carne agarrada aos ossos, selváticamente disputada por muitos, e a cozinha suja, em completa desordem para que outros limpem.
Provávelmente, seguramente, devemos muito a estes homens, mas porque será que fiquei com a sensação que, para meu grande desgosto e, acredito, dos próprios, porque porventura sentirão o mesmo, servem sobretudo como válvula de escape do sistema? Ou uma espécie de vacina, um mal que se injeta que ensina o agredido a criar defesas? Talvez pela impressionante sobranceria com que são olhados por quem atacam. Como é possível que fique tudo na mesma? No mundo e entre nós. Será fatalidade, ainda assim uma enorme vénia a estes homens porque, sem eles, concerteza seria muito pior.
Galinha com Ameixas, um filme iraniano.
À parte uma pequena mas infeliz deriva política, é disso mesmo que se trata este oriental, exótico e muito belo filme.
Baseado numa banda desenhada, e realizado pelas mesmas pessoas de Persépolis, nunca tem medo de cair em supostas vulgaridades, antes assume inteiramente a sua opção pelo romântismo, pelo sonho, pelo sofrimento por amor. Os personagens, apesar de pessoas em carne e osso, movimentam-se como se de figuras de bd se tratassem, tal como o próprio cenário, também ele parece sair do mundo dos sonhos não obstante ser real. Cria-se então uma ambiência irreal, bem sustentada pela música de um violino mágico, que nos leva por um caminho que sentimos levemente familiar, ou não percorrido há muito, ou mesmo só conhecido do subconsciente onde moram os mais profundos desejos. Imagino que recorra a técnicas muito recentes, aos mais bonitos cenários disponíveis e, constato, a excelentes atores, tal a perfeição que nos oferece. Então a fotografia! Maravilhosa.
Para além deste deleite para o olhar, ainda nos desafia para o reviver algumas das mais poderosas e vivificantes sensações que um ser humano pode ter, amor, paixão, ciúme, loucura, perdão, etc., hoje em dia tão convenientemente anestesiadas, ou servidas em doses controladas, telenovelas em ampolas para tomar a horas certas, entre outras. Uma estranha forma de vida que teima em manter as pessoas insatisfeitas, à procura de compensações materiais que enchem os bolsos a meia dúzia, e esvaziam o estômago e sobretudo os corações a quase todos.
A ideia central da fita é surpreendente e inovadora: tal como os talentos precocemente desaparecidos se eternizam imutáveis, também as paixões para sempre interrompidas quando mais ardiam, deixam no lugar do coração de quem as viveu um abismo sem fundo, onde caem e jamais se levantam.
Explico, políticos de beco.
Luís Filipe Meneses anúncia a mais que óbvia candidatura à câmara do Porto, e lá vêm os habituais jogos florais. Do CDS mandam um menino dizer que não apoiam a candidatura, porque seria dar cobertura a uma política em tudo igual à de Sócrates. O PS lança um tal Pizarro que afirma, apoiar LFM era o mesmo que dar sequência no Porto ao que o atual governo faz ao país. Enquanto o PSD se esfalfa em tão desenfreados quanto falsos porque, na verdade incontornáveis, aplausos à candidatura, o que aliás é percetível não obstante terem escolhido o seu principal artista, o Relvas, para o efeito.
A gente olha para aquilo e, perante tamanha trafulhice, só pode mesmo marimbar-se nestes homens que era suposto defenderem uma causa nobre.
Sendo evidente o que realmente os move, única e exclusivamente os seus interesses, pergunto-me, mas em que é que, de facto, baseiam a sua estratégia? Como planeiam fazê-lo? Contam com quê? E encontro algumas hipóteses:
- o povo é estúpido.
- eles são muito espertos
- o povo não quer saber
- eles são estúpidos
E, no entanto, sinto que nenhuma é totalmente verdadeira.
É sabido que o raciocínio da multidões é, muitas vezes completamente diferente do que seria o somatório do de cada uma das pessoas que dela fazem parte. O todo, nada, ou quase nada, tem a haver com as partes, funciona autonomamente. Só assim se explica que se encontre tanta esperteza em cada um e tanto encarneirar no todo.
No dia em que as pessoas passarem a pensar por elas, e não se deixarem embarcar, em modas, ou no diz que...(é impressionante o número de pessoas que afirma a pés juntos algo que desconhecem), e cuja responsabilidade é um pouco de todos, a começar nos tais politiqueiros, passando pela comunicação social, até a cada um de nós dentro de sua casa, nesse dia vai acabar-se a brincadeira e então, talvez, quem quisér assumir cargos politícos deixe de pensar estar a falar para completos ignorantes.
Para isso é necessária uma mudança essencial, que se canalizem as energias gastas a discutir o sexo dos anjos ou a fingir que se está a fazer qualquer coisa, o que dá imenso trabalho, a levar as coisas a fundo, a sair da superficíe das aparências que enganam e corrompem. É uma tarefa individual, o resultado final, só possível se todos, ou a maioria, fizer o seu próprio trabalho, virá depois.
Quando isso acontecer senhores como aqueles de que escrevia no inicío, ficarão a boiar à superficíe, como detritos indesejáveis e então já fácilmente removíveis, para reciclagem.
Ao escuro que me rodeia,
Somam-se trevas no coração.
Angústia que aperta a traqueia,
Ansiedade que procura a razão.
Faço então o esforço racional,
Pergunto-me, o que está mal?
Há-de haver uma explicação profunda
Que, com a escuridão, me afunda.
O cair ritmado da chuva em pingas?
O som, ressonâncias infindas?
A ausência de pássaros no jardim?
O súbito silêncio geral e em mim?
A relva, as árvores e as flores brilham
A escorrer na sua existência,
Como lhes basta a sobrevivência!
Descubro enfim onde está a diferença!
Então porque será que se sente?
Que o simples renascer da luz,
Reacende o rastilho e conduz,
A caminho de euforia crescente?
De súbito vai-se o medo.
Olhos só para a cor e a beleza.
Donde tal mudança de enredo?
Do pensar? Do sentir? A incerteza.
Será que tal é racional?
Será pensar? Qualquer outro mal?
Sigamos o exemplo das plantas.
Razões? Podem ser tantas!
Porquê aguardar a bonança?
Se pode ser sempre tempo de esperança?
Dentro de cada um, o sol sempre a brilhar.
Frágeis serão as nuvens que o ousarem evitar.
Bochechas, só os burros não mudam (está tudo explicado); Flopes, vou andar por aí (nem por isso); e, mãe de todas as doutrinas, pai de todos os pensamentos, capitão Moura, mamei, confesso que mamei.
Ía vendo o Prós e Contras e as orelhas cresciam a um ritmo preocupante. Com que direito tinha escrito que se deve perder as ilusões de poder escrever algo interessante? E não foram os ilustres que para isso me chamaram a atenção, apesar de ter gostado de ver o meu tripeiro conterrâneo Vasco Graça Moura, a perder vaidade à medida que vai desaparecendo na cadeira (qualquer dia está debaixo da mesa), confirmado o entusiasmo de Pinto do Amaral que já tinha sentido nuns poemas e numa prosinha, gostado do brilhantismo de Nuno Crato, que sempre constatei nas suas crónicas no Expresso, o qual, aliás, por vezes o cega, como se viu no espanto que exibiu perante uma questão aparentemente óbvia (imagino as vezes que deve acontecer ao seu colega Gaspar), e muito apreciado o voluntarismo de Daniel Sampaio na proteção dos mais frágeis, não obstante a incontinência verbal (deve ser de familia) que por vezes prejudica os seus raciocínios e mesmo a sua imagem.
Foi a vontade, sinceridade e coragem dos jovens presentes que me fez perceber que ninguém tem o direito de os dissuadir dos seus sonhos. Que me perdoem, é o cinismo do pós cinquenta a falar. Um deles, Maria João, a estrela do programa, deu uma lição de empenho, maturidade e, repito, coragem, raras para aquelas circunstâncias, e que deve fazer corar de vergonha os velhos do restelo, entre os quais tristemente me incluí. Penso que conseguiu passar esse positivismo para toda a gente, sendo que o ministro parecia o mais convencido após um curto período em que, qual pugilista, pareceu ficar grogue após um certeiro direto atirado pela estudante.
Não sou dos que acreditam que o talento se constroi na base dos oitenta de transpiração para vinte de inspiração, penso que tem que haver algo de intrínseco, pelo menos no caso dos mais brilhantes. Mas também devo admitir que estas são fronteiras que sendo difíceis de definir, na verdade, onde está o interesse em traçá-las? O prazer está na procura, feita com entusiasmo e empenho, mas também com sincera vontade. Depois logo se vê.
Concluo como comecei, citando e procurando cumprir os caseiros filósofos: errei, confesso que errei, mas, só os burros não mudam, portanto também eu, apesar de tudo, vou andar por aí, à procura.
Desvendei-o ontem, assistindo a uma conversa entre Paula Moura Pinheiro e Mário de Carvalho.
A propósito do que é mais importante perguntava o escritor: porque é que os políticos vestem roupa tão cara, ou utilizam carros tão potentes? Será que assim se sentem superiores? É isso que os diferencia? Atónita a locutora observava: depois de ler os seus livros que nos fazem viajar entre as mais diversas sociedades ao longo da história humana, surpreende-me que se admire com tais coisas! Faz parte, dizia. Antes já Mário de Carvalho chamara Chefe dos Contínuos (mostrando aliás, duplamente, pouca consideração por estes), a António Borges e se tinha engasgado irritado com a confusão de valores que prevalece.
Tal como ela, e penso muitos dos que estavam a assisitir, também eu fiquei espantado com a ingénuidade de tais afirmações. É que vinham de um homem que na sua prosa demonstra um saber que vai muito para além de tais vulgaridades. Li dois dos seus livros, Era Bom que Trocássemos umas Ideias Sobre o Assunto, e, Fantasia para Dois Coroneis e Uma Piscina, e apesar do importante peso da ironia e mesmo do sarcasmo nos textos, sempre uma forma habilidosa de manter o leitor alerta, percebi ali muita vida. Porquê então tão básicas afirmações?
Acredito que o erro estará na tentação de aliar talento, quando de imaginação se trata, a grande inteligência (no sentido comum do termo), sagacidade, bom senso, ou mesmo senso comum. Talvez por isso o choque que muitas vezes se sofre confrontando a pessoa que imaginamos ser o escritor, e aquela que ele é de facto. Ao contrário do que somos tentados a pensar, aquela pessoa não veste uma outra por cima quando se senta à secretária a escrever, pelo menos os autênticos, aqueles que criam algo realmente novo, ou que disso estão sinceramente convencidos. Um destes dias lia António Lobo Antunes: são imerecidos todos estes prémios porque não fui eu que escrevi, a minha mão fê-lo sozinha. É disto que se trata. É algo de intrinseco a estas pessoas que as distingue e faz delas especiais.
De pessoas inteligentissímas que num piscar de olhos descodificam tudo que as rodeia, está o mundo cheio. Das que dentro destas fazem reverter a seu favor o que descobriram, vão havendo umas quantas. Aquelas de alma enorme ás quais acresce a maravilhosa capacidade de no-la dar a conhecer, sempre foram, são e serão escassas. É inutil tentar explicá-las, será muito bom desfrutar e tentar compreender as suas obras.
Simpáticamente, o autor aconselhava os mais novos que sonham um dia tornarem-se verdadeiros escritores a lerem muito....Desiluda-se (ou não) quem arregaça as mangas, pode engordar a conta bancária, mas não chega coração dos leitores. Magro(?) proveito de tanto desvendar. E agora...mãos à obra!
Ou dois livros e um filme, A Infância e a Adolescência, de Tolstoi, Moby Dick, de Melville, e O Gebo e a Sombra, de Oliveira.
Tolstoi e Oliveira, com estes trabalhos, dão mais uma pincelada na vasta obra na qual são mestres. Melville descreve uma experiência que o eleva a génio da escrita.
Recentemente reli estes dois livros em traduções simplificadas, de uma coleção para jovens, e percebi como a primeira leitura que deles tinha feito há longos anos me tinha marcado profundamente. Marcam e ficam para sempre.
Autobiográfico, o de Tolstoi, movimenta-se como é habitual neste autor, no campo da psicologia, da ultrasensibilidade. Através de descrições minuciosas dos estados de alma de uma criança pertencente a uma familia russa abastada, da infância ao inicío da juventude, todos nos reconhecemos um pouco naquela criatura. O milagre está no facto de melhor percebermos o quase tudo que temos em comum, exatamente o contrário do que cremos naquelas idades, o que tanto nos atormenta. Também por isso tão precioso se lido cedo.
O romance de Melville é em tudo oposto ao de Tolstoi, um feito de sensibilidades e subtilezas, o outro de brutalidade e crueza; onde num se encontra essencialmente crianças e futuro, no outro exclusivamente adultos sem amanhã; dos confins do previsível interior continental, passámos para o insondável alto mar. Obra absolutamente única da literatura universal, só a entendi como tal após esta segunda leitura, talvez porque expurgada de longas e porventura entediantes e, talvez pior, desviantes descrições das especificidades das embarcações e, em si mesma, da pesca da baleia.
Só na figura central do Monte dos Vendavais reconheci personagem com força semelhante(?) à do capitão Ahab. O relato da sua luta sem limites pela captura da baleia assassina, é uma ode completa à coragem, à bravura, à pertinácia, à humanidade naquilo que ela pode ter de mais nobre, mas também de maior insensatez. A eterna luta entre a crueza da verdade e a bondade do razoável manchado pela sombra da mentira, raramente terão sido tão cruelmente trazidos à luz do dia e constituído tão grande dilema.
Do filme de Oliveira ficou-me a sensação de este ter encontrado no texto de Raúl Brandão uma espécie de gémeo do pensamento. Das várias adaptações que fez de Agustina, algumas atingem o nível de encaixe que se verifica neste caso, mas há muito que as coisas não saíam com esta harmonia. Os diálogos continuam essenciais mas aqui vai-se muito para além de sibilinas questões. Mexe-se na massa de que é feita a pobreza e questionam-se os porquês. O que vale a pesada pena a suportar? O tempo de uma vida é suficiente para abarcar a vontade, e cumpri-la, de não calcar o semelhante? E o preço a pagar? Vale ou não a tal pena? Perto do fim quase somos levados por um determinado caminho para, no último momento, tudo passar a fazer sentido. Marcante também pela beleza das imagens e pela magistral interpretação de profissionais que sabem tudo sobre a matéria (falta um bocadito ao Trêpa).
As excepções são saudáveis e recomendam-se, mas por via da regra o nosso sexto sentido raramente se engana. Os sapatos que um homem calça, podem dizer muito, mais do que ele quer, sobre ele. Um homem supostamente elegante, bem vestido, charmoso, com uns sapatos descuidados -alto lá! Aqui há gato escondido, com o rabo de fora. E agora imaginem outro, de ténis com MoLaS - Oh my good!!!!!!!!!.
Fujam, fujam.
Pois, e então eles não farão os mesmos juízos? Que pensarão os homens das cinderelas que calçam estas belezas?
DIR-TE-EI QUEM ÉS.
- Oh pá, não te metas com ela!. A gaja enRolla-se com todos!
- Fosga-se, a fulana é viciada nas promoções Pingo Doce?
- Esta, ainda me há-de vir comer à mão...
- Posso tirar o cavalo da chuva. Não tenho Visa nem Mastercard.
E, de repente, Sara Vaughan no rádio.
Há tantos anos esquecida nos confins da memória ali estava a melhor voz feminina de sempre do jazz.
Estava a passar uma faixa de um espetáculo que deu ao vivo em Monterey (1984). Em poucos segundos fui transportado para uma outra época, outra idade, outra realidade. O filme que se desenrolava à minha frente enquanto conduzia, adquiriu outras tonalidades, as atitudes e os movimentos das pessoas outros sentidos, outras motivações. O resto da viagem foi feito a levitar sustentado por aquela voz e, mais que tudo, pela interpretação que sai do fundo da alma.
São assim os grandes artistas. Tornam as coisas melhores, mais aceitáveis. Vestem a realidade com outras roupagens. Ensinam o caminho para o guarda-roupa que todos temos guardado na nossa mente, e que tem soluções para todas as ocasiões, mesmo para as mais exigentes, mais imprevisíveis, mais dificeis.
Já em casa corri para o todopoderoso youtube e mergulhei.
Abençoada esta gente que nos eleva o olhar do sujo chão lamacento, para a pureza e infinitude do céu azul.