Hoje, manhã cedo, sabia o que levava comigo, à saída de casa, mas não imaginava o que traria no regresso - um pedaço de felicidade!
Hoje: a inauguração. Um dos meus amigos – inspirado por um pontapé no cú, seguiu em frente - abriu as portas ao seu novo projecto – Bike O`Clock.
Manhã cedo, fui lá: de coração largo. Entreguei-lhe: um sorriso, um beijo, amizade e simpatia. – Confio-te os meus tesouros; sei, guardá-los-ás junto dos teus.
Fácil se advinha o assunto do negócio: bicicletas e, todo um imaginário de complementos criados por gente que domina o tema. Energia; muita energia positiva, recebi de volta, naquele espaço. Os modelos: brilhos nos olhos dos primeiros curiosos que visitavam o Bike O`Clock. Entre brilhos e encantos, o meu olhar deteve-se num modelo: Night Owl. Ela, a bicicleta, permaneceu imóvel, eu, hibernei em memórias:
- Vais demorar?
- Não, daqui a pouco a tia leva-me para casa, porquê?
- Por nada; mas não demores, anda logo que possas.
15 minutos depois: nos meus olhos ardiam brilhos de azul meia-noite. Linda;
fantástica; guiador altíssimo; acento com encosto; e, imagine-se: uma caixa chamada: mudanças. Comparo-a, hoje, a uma harley-davidson sem motor; a minha bicicleta, o mais belo objecto de prazer de toda a minha adolescência.
Desde aquele dia, unidas na alegria e na dor - separadas pela vida.
Eu, a Miguel, o meu irmão, o Chico e outro que esqueci o nome, partilhamos em aventura todos os segundos, horas e anos, que esta idade – efusivamente - nos concedeu.
.- Amanhã há mesma hora? -Sim.
Das 2 às 7; rolávamos sobre sonhos e escrevíamos a nossa estória, muitas vezes com dor, sobre asfalto. A meio da tarde, lanche de sobrevivência: limonada, pão com marmelada e fruta; lambuzávamo-nos nos bancos do jardim Valverde. A certa altura, onde hoje está parte da VCI, decidimos explorar os montes: experimentei um trambolhão muito, mesmo muito, feio. Ah! Mas a bicicleta – o mais importante – continuava linda!
.- Amanhã há mesma hora? -Sim
Naquele dia: apareceu mais alguém. O Manuel, rapaz de poucas falas, gracioso e hábil, no alto do seu selim. Segundos, horas, semanas. Ao contrário dos meus amigos, que o aceitaram com desconfiança, eu, reescrevi a minha lista das coisas importantes: 1º- o Deus Grego: Manuel; 2º - a bicicleta.
.- Amanhã há mesma hora? -Sim, Manuel.
Ela permaneceu lá, eu regressei - rolando sobre o meu pedaço de felicidade!
Meter a mão na massa, agir, cultivar o nosso quintal.
É esta a imagem metafórica que Voltaire nos deixa com o seu romance "Cândido". Em menos de cem páginas vai destruindo paulatinamente toda e qualquer mensagem de otimismo venha ele de onde vier. Amargurado pela visão dantesca da destruição de Lisboa, na época um dos principais pontos de convergência de gente e mercadorias na europa, provocada pelo terramoto de 1755, o autor cria uma sucessão de cenários limite, mesmo grotescos, que demonstram a inutilidade das religiões, filosofias ou promessas dos politícos, mostrando, um a um, o nada a que conduzem. Ela mesma um ensaio filosófico como o tempo veio a comprovar, esta obra conclui muito pragmáticamente que é pela ação própria que cada um se pode salvar.
Deve ser por causa do momento que vivemos que imediatamente após acabar a leitura deste pequeno livro, ignorando o sentido muito vasto que Voltaire dá à palavra quintal, todos temos um, dei comigo a converter o jardim em horta. Recorrendo aos ensinamentos deixados pelo meu pai, busquei na memória as estações e os produtos adequados. Voltei aos meus tempos de menino, de enxada na mão a abrir regos para as batatas, a sulfatar a sua rama por causa do "arejo", a plantar cebolas ao lado, e, mais tarde, no lugar deixado vago após a colheita, olha que grandes! e limpinhas (sãs), alegrava-se o meu pai, metíamos pencas e bróculos para o inverno (antes já tínhamos feito o alfobre). No inicío da primavera, noutro espaço do quintal, tínhamos plantado tomates e semeado feijão, os quais viríamos a estacar mais tarde. A bordejar o terreno, para além da couve galega, as coisas mais miúdas, de acesso fácil, cenouras, pimentos, alface, salsa. etc.. Árvores de fruto, poucas, porque faziam sombra e, por cima dos carreiros, a toda a volta, as uvas "americanas". Toda uma outra festa, colher, pisar, espremer, engarrafar, beber. Como sempre, quando na memória, o quintal era imenso, hoje, quando o olho penso, como era possível fazer tanto em tão pouco!
Não sei se vou precisar de substituir as flores por couves, mas sei que tenho tentado cultivar o meu voltariano quintal de forma a que se tal vier a ser necessário, conseguir substituir sem esmorecimentos ou queixumes, mas com firmeza e serenidade, o perfume de umas pelo sabor das outras.
No inicío todas as grandes ideias de mudança dão origem a muita desconfiança e, no caso das de grande fôlego, são consideradas utopias. Estas últimas só conseguem vingar se o acaso faz convergir favorávelmente uma série de premissas à partida inconciliáveis, se surge uma pessoa suficientemente convicta e capaz de arrastar multidões atrás dela na persecução do objetivo ou, ainda mais raro, quando estas duas hipóteses coincidem.
É o que acontece segundo o argumento do filme, A Pesca do Salmão no Íemen, baseado no livro com o mesmo título. Uma satírica comédia romântica que, sem se levar muito a sério, aborda alguns dos problemas mais presentes dos nossos dias e, principalmente, uma questão de sempre, que atravessa os tempos, ter ou não ter fé. Essa força que não se explicando pode mover montanhas.
Após a morte de uma séria de soldados britânicos no Afganistão, o governo inglês tem necessidade de distrair a opinião pública desse facto através de algo que, vindo daqueles lados, possa minimizar o impacto e criar ilusões positivas que "justifiquem" o ocorrido. A ideia maluca existe, a máquina de propaganda politica é diabólica, só foi necessário juntar um cientista e uma secretária de uma agência comercial numa fase desorientada das suas vidas, e um capitalista para que a coisa aconteça. É este último a alma do projeto, a tal pessoa que, contra tudo e contra todos acredita no sucesso da loucura que é tentar pescar salmões no deserto. O filme tem imagens muito bonitas, as interpretações estão a cargo de excelentes atores e o desenlace, não sendo surpreendente, não tinha que o ser, contém uma bela mensagem.
É de um homem com o perfil do verdadeiro herói desta fita, que curiosamente não é o que fica com a beldade da ordem, que a europa do euro carece. Ou, por outras palavras alguém que tenha fé autêntica no projeto inicial que apontava para um juntar de forças, para um organizar de esforços que conduzisse à melhoria no nível de vida das populações dos países aderentes à moeda comum.
Da última madrugada, para além da habitual promessa de distribuição de mais uns quantos biliões, quem é que ainda atenta na dimensão do número? Saiu da reunião do eurogrupo o reforço da ideia, parece que desta vez com mais entusiasmo, da imperiosa necessidade de "juntar os trapinhos". Os que têm dinheiro só aceitarão assumir a dívida de alguns como também deles, se puderem controlar como ele é gasto. Tal só é possível se a forma como cada um governa a sua casa, política, económica e socialmente, passar a ser problema de todos. Resumindo, um governo comum a um conjunto de estados federados.
O que é que falta para que se passe à ação? Voltando ao inicío, a primeira premissa para que se cumpra a utopia, a convergência das tais condições há uns anos altamente improváveis (leia-se a dimensão e profundidade da crise) estão aí, atingem-nos de todas as maneiras, e o emagrecimento da carteira não é a pior delas. Falta cumprir a segunda, a emergência de um líder. Quanto mais tempo demorar pior. As circunstâncias deteriorar-se-ão cada vez mais levando ao risco da escolha do mesmo ocorrer em desespero o que, é histórico, acabará por fazê-la recair sobre um qualquer populista vendedor de soluções milagrosamente fáceis e, a prazo, desastrosas. Esperemos que, enquanto é tempo, apesar de tudo em paz (mas em rápido apodrecimento), algum desses homens ou mulheres que têm o futuro de todos nas mãos, tenha a lucidez a coragem e a força imanente de uma fé qualquer, para colocar sobre carris e em andamento a locomotiva que há-de liderar este conjunto de países. Um comboio para o Futuro!
Ultimamente tem acontecido com alguma frequência os telejornais abrirem com grupos de pessoas empunhando cartazes que, tal como elas gritam, não te chegam 10.000? vivo com 300, vai-te embora ladrão, és o principal responsável pelo a que isto chegou, etc.,etc.. O alvo é o mais importante representante de Portugal, Cavaco Silva.
Num tempo em que toda a ambição parece estar remetida à concorrência entre tudo e todos, segundo os mais iluminados a maneira mais fácil, rápida, de atingir a felicidade, até ou sobretudo, os partidos politícos e quem os domina, está sujeito e vive nessa e dessa espécie de ditadura, tresloucada corrida para a frente que nos há-de conduzir a um precipicío qualquer. Em vagas, os que vão chegando tratam de empurrar os que já estavam à beira do abísmo. Pergunta-se, em quem acreditar? O que realmente move estes homens? É precisa muita coragem, para além do talento, para se aventurarem a pegar no destino de um qualquer país nos tempos que correm, espiríto de missão. Ou devo antes escrever, arrivismo, inconsciência, ambição sem limites? É, obviamente, pelos dois motivos. Quero acreditar que é pela primeira hipótese que a maioria dos politícos optou pela causa pública, apesar de não ser fácil quando todos os dias nos chegam noticías de corrupção que não escolhe profissões, extratos sociais, confissões religiosas, ideais politícos, país, seja o que fôr.
A desconfiança é a palavra de ordem. Andámos a enganar-nos uns aos outros há demasiado tempo para que a festa possa continuar. Não porque haja de facto uma tomada de consciência generalizada que conduza à redenção, mas simplesmente porque os mais fortes, como é costume, abusaram, exageraram. Chegaram ao ponto de se autoconvencerem que tinham direito a tudo, afinal fruto das suas brilhantes capacidades, do seu incansável trabalho, e os outros a nada, se não andaram...que andassem. Dos fracos não reza a história. Isto é mesmo assim, quem tem unhas é que toca guitarra. Músicas que vão servindo de justificação e embalo.
É aqui que entra o presidente da republica. Só posso entender o disparate que disse a propósito da escassez dos seus rendimentos, por viver longe da realidade, encandeado pelo brilho que o rodeia, um autismo muito comum em quem lidera. E quanto mais alto pior. É muito triste e alarmante assistir aquelas manifestações onde aquele que devia ser o nosso último porto de abrigo é insultado sem piedade. Afinal a quem devemos respeito? A quem estamos entregues?
É imprescindível um modelo, alguém acima de qualquer suspeita em quem possámos depositar as nossas esperanças, sempre foi. Esta corrida ao ouro, este saque, quase o fez esquecer. Numa familia, empresa ou país tem que haver alguém consensual, ultima reserva cujo estatuto conquistou pela dignidade, firmeza e também bondade de caráter. Ainda agora assistimos a uma boa parte disto no jubileu de Isabel II. Exemplo e motivo de união nos quatro cantos do mundo, via Commonwealthe (bem estar comum, que belo objetivo a perseguir!). Confiança precisa-se.
Ou Saramago. Erva daninha indomável. Indestrutível. Autosuficiente. Impede o desenvolvimento à sua volta.
Atacou frontal e violentamente as religiões, implacável com os políticos, demolidor para aqueles que achava o tinham injustiçado, impiedoso para os mais chegados quando o entendia inevitável, seco, de relacionamento dificíl porque absolutamente direto, cru.
É verdade que podemos encontrar muitas destas carateristícas na personalidade de José Saramago, simplesmente, quase sempre aplicadas de uma forma adequada, por boas razões, como acreditava. Certamente que cometeu injustiças, mas quem não as comete? Acontece que o homem tinham um caráter rude, moldado por formas severas mas também firmes, inteiras, de onde saiu uma criatura acima de tudo autêntica.
Juntar tudo o que foi dito a um talento enorme para observar o mundo e uma arte ímpar para o explicar por palavras, através de fantásticas e gigantescas metáforas, resultou num escritor formidável, lido por todo o lado, por todo o tipo de pessoas, credor de uma admiração sem limites.
Imagino que quem comece agora a ler Saramago, especialmente as primeiras obras, longos parágrafos sem qualquer vírgula, enfrente o mesmo problema que eu no inicío. Digo-lhes o que o meu irmão, já grande fã, me disse, faz de conta que as virgulas estão lá, lês até te faltar o fôlego e recomeças. Resulta.
Acredito que o escritor viveu duas vidas, uma até conhecer Pilar Del Rio e outra depois. É certo que a sua obra mais monumental foi escrita na primeira vida e a razão por que estas duas pessoas se encontraram, mas o que fez daí para a frente, em crescendo, vai adquirindo uma luz, tonalidades mais abrangentes, uma espécie de mundovidência que me parece estaria vedada aquele Saramago algo amargurado a quem a espanhola trouxe lucidez por via de um amor que, só por si, já constitui uma espécie de mistério ou, no minimo, a prova da falência da racionalidade opressiva que parecia dominar Saramago.
Cada livro é uma obra de arte, todos os que li dignos dessa classificação, umas brilham mais que outras mas, na essência, são todas igualmente enormes. A imaginação, os pormenores, a riqueza de caráter das pessoas, a forma mágica, ou laboriosa, ou rigorosa dos enredos, a importância destes na vivência de todos nós, a omnipresença da defesa do respeito pela pessoa humana, pela sua sensibilidade pela positiva ou da total falta dela pela negativa, personagens inesquecíveis. Verdadeiros compêndios de sabedoria para aplicar na vida.
Memorial do Convento ensina-se e continuará a ensinar-se por muito tempo nas escolas. O Ano da Morte de Ricardo Reis é o livro certo para conhecer o autor e o Portugal de Salazar. Ensaio Sobre a Cegueira, posto em filme por Fernando Meireles é premonitório sobre o futuro do mundo. Todos os Nomes é uma metáfora fabulosa sobre o funcionamento das pessoas em sociedade. A Viagem do Elefante é um divertimento fantástico com história dentro. Para o fim a obra da minha preferência, A Caverna, genial cruzamento entre a Alegoria da Caverna de Platão e os Centros Comerciais dos nossos dias para trazer à luz as várias facetas da natureza humana.
"Que terraço espetacular! Grande, virado a sul, sempre com sol!" Foram as palavras que adivinhei ditas por aquelas pessoas que, pela primeira vez, viam a sua nova casa. Transbordantes de alegria riam-se com o corpo todo. Beneficiárias de uma política camarária, tentativa para reanimar um dos muitos monstros moribundos da autarquia, plena destas zonas residênciais às moscas, que baixou considerávelmente as rendas para captar/ajudar potenciais moradores.
Por contágio recordei momentos semelhantes vividos por mim e pelos meus. Cada casa estreada correspondeu ao alcançar de um sonho, ao atingir de uma meta. Tal como aquela familia que hoje observei, vai, mais tarde ou mais cedo, achar tanto sol excessivo, o calor abrasador, nem se consegue dormir, também nós fomos traçando metas diferentes, até esbarrar numa parede chamada realidade.
É nessa insatisfação permanente que mora o gene da evolução, o facto de não continuarmos a atirar pedras uns aos outros, a arrastá-las pelos cabelos ( ok, ainda há para aí uns quantos pré-históricos). A grande questão é como gerimos esse desejo de mudança.
Ultrapassando a primeira grande escolha, responder à pergunta, qual a razão mais profunda que motiva esse desejo, ou qual o nosso conceito de evoluçao, qual o seu sentido, questões para decifrar mais tarde(?), ás vezes tarde de mais, direi que há três variáveis essenciais que condicionam decisivamente o sucesso ou falhanço do atingir o objetivo: reconhecer o meio ambiente em que se vive, o que nos pode oferecer como vantagens e tirar pelas desvantagens, assumir a realidade de quem nos rodeia, do universo familiar, no que é que ele pode contribuir para ou exigir de nós e, claramente mais determinante, ser-mos absolutamente conhecedores e sinceros quanto às nossas próprias capacidades.
Infelizmente as coisas não são assim tão simples. Logo a começar pelo sistema de ensino vigente que obriga a tomar decisões fundamentais para o futuro em idades em que não temos maturidade para o fazer, muito longe disso, ficando entregues à lotaria de ter pais tradicionais ou...visionários, até ao sufoco que é viver numa sociedade que sempre, independentemente do período histórico considerado, se preocupa mais com hoje que com amanhã. Dir-se-á, quantas pessoas com baixos níveis de expectativas atingiram cumes inimagináveis. Mas quantas acreditavam que podiam ir mais longe e ficaram aquém, muito aquém do que queriam? Incomensurávelmente mais. E aí é que está o drama. Pode ser medido pelo muito que está errado à nossa volta. Daí fazer sentido as familias ocuparem-se em dotar os seus filhos das armas necessárias para melhor tomarem as decisões deles, mantendo-se atentas, de reserva, caso sejam precisas para ajudar a que as vejam com mais clareza ou a considerarem alternativas da sua, deles, escolha.
Aprendi que a principal lei da economia reza, as necessidades são sempre superiores aos recursos, estes são sempre escassos. Está aqui sintetizada uma das principais regras da qual deriva toda a vivência humana, queremos sempre mais! Tudo começa em cada um de nós. Quanto melhor soubermos gerir essas expectativas melhor.
Obs - Hoje no passadiço sobre a areia uma avó como as outras empurrava o carrinho com a neta, entre um e os dois anos, sujas-te a avó toda, dizia, até aqui tudo bem, normal, até que desata a cantar Boss AC, hoje já é quinta-feira, e o bébé a plenos pulmõeszitos, yeah, amanhã é sexta-feira, e volta a criança, yeah, e eu fico a pensar, fantástico, génio ou Pavlov a encher silêncios? Seja como fôr promete.
" Santo António já s'acabou, o S. Pedro não começou, S. João, S. João, S. João..."
Nada melhor que viajar pela música de alguns dos mais notáveis compositores franceses para readiquirir o equilibrio perdido no meio de tanta luz, tanta cor, tanto barulho bom da alegria, dos altifalantes, nos excessos da mesa, de olhos perdidos em dezenas de balões, no fogo de artificío.
Camille Saint-Saens ( La Cygne ), Claude Debussy ( Claire de Lune ), Eric Satie ( Trois Gymnopedies ), Gabriel Fauré ( Siciliénne ), Jules Massenet ( Meditation ) e Maurice Ravel ( Pavane Pour Une Infante ), o mesmo peso no outro prato da balança.
Depois do paganismo a religiosidade, depois do profano o sagrado. Confere.
É a característica principal que as pessoas do Porto oferecem a esta festa de S. João.
Não obstante ser o santo popular de vários municípios, do seu dia festivo em cada ano que passa, é nesta cidade que as comemorações populares adquirem formas muito especiais. Do ponto de vista histórico, antropológico, ignoro haver razões para esta autêntica febre generalizada cujo delirío se manifesta na procura de contacto fisíco entre as pessoas.
Constitui para mim um mistério o que leva as pessoas, uma vez por ano, a sair em massa para as ruas da cidade, e desatarem a tocar-se, a falar-se, e a, mais que olhar-se, ver-se. Também eu tenho a minha opinião a propósito do fenómeno, mais uma entre tantas que carecem de suficiente fundamentação, terá que ver com a natureza fraterna desta gente, tantas vezes registada na história, da qual refiro como o exemplo, o episódio durante a guerra civil, no qual os portuenses prescindiram de todas as suas reservas alimentares para as oferecer ás tropas liberais que haveriam de libertar o país, sobrando para eles as vísceras dos animais e o apelido de tripeiros. Quase todo o tempo sérios, fechados, desconfiados, para, de uma só vez, libertarem, numa explosão imparável da já não mais contida necessidade de partilha de afetos, de redenção para desavenças, dar oportunidades a novos começos.
Quanto a mim sinto a sensação do dever cumprido. Primeiro pela mão dos pais, cidade afora, alegria esfusiante, as primeiras multidões, os primeiros apertos, martela aqui, cheira ali, esfrega acolá, as sardinhas, os carrinhos de choque, o fogo de artificio. Depois a primeira noite sem dormir, as longas caminhadas até à Foz, deitarmo-nos na areia a ver o mar de um lado e um dos primeiros nascer do sol do outro. E ela ali tão perto, tão surpreendentemente disponível. Mais tarde, já com o filho pela mão e a companheira ao lado, o passar do testemunho para reinicío do ciclo.
Hoje cruzei-me com a Vanessa, essa, a filha do velho Lau.
Ainda antes de a reconhecer reparei numa figura esguia que se aproximava rápidamente, correndo, passada larga, elegante, e pensei, vem aí atleta. E vinha. Morenaça, muito fashion num conjunto verde fluorescente próprio para o efeito, onde não faltavam uns folhinhos nas alças para dar um toque feminino. E dava. Ao contrário da generalidade dos transeuntes não escondeu o olhar. Senti simpatia por aquela figura. Ainda não há muito tempo no topo do mundo como melhor trialista de sempre, agora, há tanto desaparecida das noticías, ali estava ela, quase anónima.
Fiquei a pensar até que ponto a ascenção meteórica no reconhecimento mediático tem que ser paga. Muito se disse e escreveu sobre esta rapariga. Tudo somado a ideia que me ficou é que a Nessa, para além do Fernandes, só foi buscar ao pai aquela força fisica incrível para trepar montanhas, quanto ao resto, a humildade e perseverança que o levou a uma carreira para além dos quarenta, deve ter ficado perdido naquela troca de fluidos que lhe deu origem.
Sem que desse por isso estava a pensar num texto que li recentemente, O Duelo, de Anton Tchekhov.
Cem páginas onde o autor põe em confronto meia dúzia de personagens, habitantes de uma pequena vila situada numa das antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso, através do qual faz uma demonstração tão simples quanto eficaz do que é essencial na relação entre as pessoas. Ao contrário do outro, que por não ter tido tempo, enviou uma missiva demasiado longa ao amigo, Tchekhov teve tempo para a simplicidade.
Em duas linhas: dois antagonistas, em comum serem ateus, em tudo o resto a antítese um do outro, um, trabalhador incansável, metódico, frontal, autêntico, implacável a respeito de qualquer tipo de parasitismo, tal como na selva, deve ser destruído, em nome da evolução de espécie. Outro, enganador, preguiçoso, caótico, vicioso e indisciplinado, que sempre viveu de expedientes e aldrabices. Quando, após toda uma trama genialmente construída pelo autor, o confronto se dá, opera-se o milagre e, por caminhos opostos, ambos descobrem que ninguém é dono da verdade. Lição de humildade tantas vezes citada e tão poucas aplicada.
Permite-me, pensar, oh ingénuidade!, que se a Nessinha , concerteza que é assim que o pai a trata (como esquecê-lo nos jogos olímpicos da China, enquanto se esfalfava a acompanhar a prova da filha, a gritar, Vánessa isto, Vánessa aquilo), tivésse acesso a esta quase fábula, iria ficar a pensar e, quem sabe, voltasse ao nosso convivío a grande Vanessa Fernandes.
A hortelã, fogosa e efervescente; sempre ansiosa por mergulhar no mojito. Nem precisa falar muito para se fazer notar - sempre pronta para a festa -, e se por perto há morangos com porto, não se faz rogada, dispensa convite; está omnipresente. Envolve-se com muita graça – sedutora por natureza. Plena de energia, refrescante, dá-se bem noutras misturas: menos eufóricas, mais intimistas - deixem-na prender a atenção -, deixem-na ser feliz.
O cebolinho – elegante, bailarino -, baila como ninguém ao som da brisa. Ora para a direita, ora para a esquerda; fala comigo, sussurra. Muito mais subtil que outras espécies da mesma família – mesmo assim, não menos estimulante. Picado; finamente picado. Extremo no pormenor, revela-se no detalhe, na minúcia – percebo isso e dou-lhe espaço -, dêem-lhe o palco que merece – espectáculo garantido. Convivemos com moderação; a distância, implícita, impõe-se. Senhor do seu (nosso) nariz, - bons dias e boas tardes -, q.b.
Agora, um caso sério, tomilho-limão v.s. manjericão. Divertem-se, estes dois, na disputa da minha atenção – eles não sabem, mas isso também me diverte -, apuram esforços; tudo na base das manifestações pacíficas, nada de violências. Casos perdidos; não me conquistarão – demasiado previsíveis, esmorece-me a previsibilidade, enfraquecem a intensidade -, mas fazem-me muita falta. Se me ignoram – à se me ignoram -, sou eu quem os desafia - interrompo a interrupção; continuo a contiguidade -, falo-lhes na linguagem que mais os toca, simplesmente, tocando-os. Alimentadas as esperanças, sopram-me as mãos de frescura, reanimam-se. De novo confortável, tenho de retribuir:
- Tomilho-limão, esta noite, preciso de ti. Ouço o frango; bate asas de contente.
- Manjericão, amanhã, pela manhã, acordas do meu lado? É muito sensível o manjericão - convidá-lo, é preferível. Risos; atento e descarado: o queijo fresco.
Tudo está bem, quando acaba bem. Fazem-me muita falta.
A salsa. A salsa, muito sensível, está triste, infeliz. Demorei algum tempo – falta de atenção a minha -, a perceber isso. Tão popular a rapariga; que lhe fará falta? O rival, coentros de companhia? Não. Definitivamente, fomentar mais uma guerra norte-sul – não. Companheira sempre presente, talvez por isso, erradamente, o tempo faça a viagem em sentido contrário: cresce em omissão e diminui em atenção. Tenho de inverter a marcha; dizer-lhe já: – obrigada pela tua companhia incondicional, fazes parte da minha vida.
Com o alecrim, só falo quando ele me aparecer aos molhos; sempre quero ver se me choram os olhos.
Mas é a ele, não o alecrim, o outro - quem me inspira, seduz, desafia -, altivo e misterioso, a quem dedico toda a minha apaixonada contemplação. Por baixo das suas folhas, brotam segredos que anseio desvendar. Segredos – colorido intenso. Falam, por nós, os nossos sentidos; entendem-se, fundem-se. Pimento vermelho - o seu nome. Agora ainda verde; não tarda, revela-se na cor da paixão.
As minhas ervas; eu falo com elas – estimulam-se os sentidos -, elas respondem, aromas.
Ao longo da vida vão reforçando a armadura dentro da qual vivem acabando por torná-la práticamente indestrutível, intransponível.
Em tudo descobrem ameaças, justificação para a sua atitude de desistência da vida transformando esta numa espécie de sobrevivência alimentada pela prazer da desgraça alheia e pelo crescente autocontentamento assente na sensação de segurança, sempre perdido na dúvida desta poder vir a ser insuficiente, logo caindo no ciclo vicioso.
Solitários e discretos, tal qual aranhas constroem uma teia onde os incautos acabarão por cair e dos quais, após anestesiamento e imobilização, se alimentam até lhes sugarem a energia até ao fim. Por este processo fazem inúmeras vitímas e duram muito tempo.
Consoante a sua constituição podem edificar fortalezas, construir impérios, sugar e destruir povos, as mais raras, ou, no caso das mais comuns, viver em pequenos abrigos onde seguindo a mesma natureza das mais poderosas, vão sobrevivendo da energia alheia.
Durante a sua existência nunca dispendem muito esforço, poupam-se o máximo que lhes é possível, resultando daí fazerem pouquissímo seja do que fôr, toda a sua energia é reservada para o momento do ataque, cujo desenlace pode ser rápido, mas também pode demorar, situação em que demonstram uma imensa paciência e uma energia inesgotável.
São raras as vitimas da armadilha que conseguem escapar, ainda assim com muita vontade, frenético bater de asas, evitando dar tempo para grandes injeções de anestesiante ou a labirinticos nós e laços da abjeta e enleante teia minuciosamente tecida, é possível fugir.
Apesar de tudo é possível escapar a este perigo. Evitar frequentar lugares esconsos, gente de princípios duvidosos, dar ouvidos a vendedores da banha da cobra, são bons princípios na maior parte dos casos mas, acima de tudo, muito cuidado nos momentos maus, normalmente rondam por ali, à espera de uma oportunidade. Estes espécimes não costumam resistir a grandes espaços, bem iluminados, a discursos claros, bem fundamentados e sobretudo a qualquer demonstração de amor ou carinho por eles. É como a luz do sol para os vampiros.
O livro, O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, suscita uma mistura de sentimentos.
Foi de uma grande habilidade pôr na cabeça e na boca de uma criança de quinze anos tudo aquilo que pensavam, pensam, muitas daquelas pessoas que tiveram que sair, ou fugir, das antigas colónias portuguesas aquando do 25 de Abril de 1974.
Tal como em vários aspetos ao longo do livro, também este facto é ambivalente. Se por um lado "desresponsabiliza", por outro dá outra frescura e autenticidade ao relato.
A dúvida maior que persiste e subsiste nesta obra é, qual é o sentimento mais forte que sobra no coração dos retornados das antigas colónias? Mágoa ou compreensão?
Não é possível abstrairmo-nos da pessoa autora desta obra. Passou relativamente pouco tempo sobre os factos e, todos nós tivémos, e temos, alguém que viveu a mesma situação. Quanto a mim tenho-os desde aquele que passou meses à janela do hotel Infante Sagres (cinco estrelas) no Porto, com medo de sair à rua, e a alimentar-se básicamente da liamba que trazia a encher uma das malas, até a outros que, suspeita-se, vieram com as baínhas das calças bem fornecidas. Contam de acampamentos feitos no meio daquilo que tinham sido magnifícas salas comuns, e de onde os tacos eram arrancados para fazer fogueiras, ali mesmo, onde ardiam lentamente quilos de droga. Mas também dos bons tempos, do espaço, da terra, do sol, da abundância e da docilidade, filha da fraqueza de espiríto dos indigenas.
Sempre que os ouvia e posteriormente, ao longo destes anos, me pareceu que, os que foram para lá e não os que lá nasceram, ou que para lá foram muito pequenos,"esqueceram" o que tinham deixado, a pobreza, o frio, a pequenez em toda a linha mas, sobretudo de horizontes, mesquinhez em que assentava o regime e que dela sobrevivia. Foram capazes de dar o passo em frente naqueles tempos iniciais e, mais tarde, após a revolução, foi com essa mesma força que ajudaram a levantar o país. Outros, com menor capacidade para arriscar, por aqui ficaram a comer o pão que o diabo amassou, e, apesar de tudo, a guardar um lugar para quando eles voltassem, inconscientemente mas, também, objetivamente. Como se costuma dizer, ninguém é bom juiz em causa própria.
A obra ressente-se, para o bem e para o mal, desta falta de distânciamento que tira discernimento mas dá profundidade e espessura ao relato. A pureza do talento da autora está presente naquela ideia de perda, quando deixámos de pensar numa coisa de cada vez, quando, com a idade, as ideias começam a vir agarradas umas às outras, perde-se pelo caminho a autenticidade presente na primeira, como se nada seja de facto real ou tenha interesse. Acontece que este sentir, esta perda de inocência, nada tem de exclusivo na criança a quem foi retirado aquele chão africano, foi concerteza violento, mas nas crianças este é um conceito muito complexo, desde logo porque também a sua capacidade de readaptação é muito maior. O que de melhor tem esta obra, no que afinal é igual ás melhores, podia estar presente num outro qualquer relato.
A autora cresceu em África, a sua personalidade foi moldada pelo ambiente em que viveu e também pela educação que lhe foi transmitida pelos seus ascendentes. Tal como todos nós é fruto dessas duas componentes, e a educação que se recebe é o fator primordial para um crescimento saudável, há um sem número de crianças que viveram em ambientes extremamente adversos e são pessoas que, graças aos ensinamentos que lhe foram transmitidos, são equilibradas e felizes. Esse é o principal legado que lhes foi deixado.
Curiosamente vivemos hoje uma situação que tem, no essencial, algumas semelhanças com aqueles tempos. Algumas porque se o que leva as pessoas a partir é a mesma ambição por uma vida melhor do que era provável terem no seu país, e que a esmagadora maioria por cá continua a fazer o seu melhor, também é verdade que se acabou o império, esse paraíso de riquezas e mãos para toda a obra. Cantam-se agora outros paraísos. Na verdade não existem, como nunca existiram. Por isso hoje como ontem, sentimentos como a ambição, o empreendedorismo, a capacidade de risco, fazem tanto sentido quanto a necessidade que temos de evoluir. A grande questão continua a ser como, e para quê. Como sempre, só sairá com sucesso dessas aventuras, durem elas o que durarem, quem as alicerçar em objetivos bem definidos, claramente assumidos e acima de tudo positivos. Ter como legado uma educação que defenda como mais importante o respeito e fazer-se respeitar é meio caminho andado.
De volta ao livro, O Retorno, se quem o lesse fosse alguém que nada tem haver com o seu conteúdo, concerteza diria tratar-se de uma excelente obra, cheia de ritmo, da qual é dificíl levantar os olhos, podendo fácilmente ler-se de um só fôlego. Acontece que se lida por portugueses fala para uma grande maioria deles, dos quais muitos não se sentirão muito bem na fotografia porque sentem que enquanto povo, estão a ser injustiçados.
Noémia, Fernanda e Maria da Graça ou, proteção, corpo e intelecto.
Podias vir comigo, não passa ninguém na rua, faz-me medo! Aquela seria uma das primeiras ruas alcatroadas de Gaia. Ía desde a escola indústrial até Vilar do Paraíso. Naquele tempo, finais dos sessenta, dois quilómetros práticamente sem habitações em qualquer dos sentidos, automóveis muito raros. Pessoas? Lá vem um. Por isso a Noémia me pedia para a acompanhar no seu regresso a casa. Por isso e, desconfiava eu, por mais qualquer coisa. Lembro um rosto muito branco, uns olhos risonhos e uma trança preta. E também um casaco verde claro, alface. Ou serão as fosfurescências da memória? Primeiras sensações de sentido de missão no proteger.
Um ou dois anos depois a Fernanda. Mini saia, coxas roliças, olhar travesso por baixo duma frangita que lhe caía sobre testa do cabelo cortado curto. Uns lábios finos mas sedentos de experimentar os meus e, é verdade! também os do Freitas. Acho que chegámos a andar á porrada. Conquistar a rapariga mais bonita era a principal pena no chapéu do líder. Primeiro beijo digno desse nome, despertar a sério para as surpresas do corpo e da efemeridade das conquistas. Doeu!
Terá sido logo no ano seguinte, segundo do ciclo, o primeiro em que senti as exaltações e amarguras do amor. A Maria da Graça foi a responsável. Rapariguinha com um rosto que recordo perfeitamente simétrico onde dominavam uns vivissímos olhos castanho escuro, encimados pelas sobrancelhas bem marcadas, melhor desenhadas, nariz a direito, uns lábios muito perfeitinhos, sempre cerrados que lhe davam aquele aspeto sério, austero e decidido que eram ela, tudo enquadrado no rigor de um penteado à Beatriz Costa. Tal como o primo João Pedro, também da minha turma, vestia sempre uma impecável bata branca. Eram os únicos e, sabíamo-lo, marca de gente de posses da Madalena. Uns "doutores" que viviam numa casa grande. Dispensava-me uma réstia da atenção que lhe sobrava da incansável luta para ser perfeita. Só eu conseguia ombrear com eles nas melhores notas. Suspeito que era por isso, por respeito e, vá lá, alguma admiração, por às vezes eu conseguir superar o géniozinho que era o primo, fonte de todos os seus pesadelos de grande competidora, que se dignava lançar-me olhares furtivos e meios sorrisos. Julgava na altura, e hoje, que era o seu eleito. Vivi absolutamente fascinado por aquela rapariguita muito direita, de movimentos enérgicos, de olhar inteligente, decidido e de uma beleza de pedra preciosa. Nesse ano, pelo natal, mandei-lhe um cartão de boas-festas. Ela respondeu! Apesar de nunca mais a ter visto, continuei a fazê-lo durante vários anos, e ela a (co)responder.
Agora me lembro! Ainda antes, pelos meus oito anos? a loirita de olhos negros, celestial! filha de uns ciganos ricos, e que, juntamente com outras crianças ficava à guarda da vizinha da frente, e cuja recordação, agora mesmo, me trouxe uma angustiazita terna. E a Esperança, uma boa meia dúzia de anos mais velha e onde sobressaim umas convexidades que já se metiam comigo e se adivinhavam umas perturbantes e tropicais côncavidades. E...
Ouvindo Miguel Angelo, exvocalista dos extintos Delfins, grupo que me foi pouco mais que indiferente, dizer que acima de tudo gosta de canções, das melodias e da repetição do refrão, das pessoas a cantá-lo, lembrei-me de uma canção deles de que gosto, Azul, das menos conhecidas do grupo.
Este raciocínio fez-me reparar no facto de, dessas inúmeras canções que tenho na memória e que, de algum modo, são também a minha vida, retenho sobretudo aquelas que nos pequenos discos de vinil de quarenta e cinco rotações, os ep's, ficavam do outro lado daquelas que eram as principais, as que, também a mim, tinham levado à compra do disco. Hoje ficam escondidas lá pelo meio dos cd's ou dos dvd's.
No lado b do famoso disco, Je t'aime..., de Jane Birkin, está uma versão de Serge Gainsbourg de uma canção de Schubert, Jane B, cantada por aquela, lindissíma.
Dos Beatles (George Harrison) recordo dezenas de músicas mas, Here Comes The Sun, supera todas.
O mesmo poderia dizer de Stevie Wonder, são muitas as canções inesquecíveis do génio, That Girl, ganha a todas.
Uma música acompanhou boa parte da minha infância, Alone Again Naturelly, de Gilbert O'Sullivan.
Sei De Uma Camponesa, é, de Rui Veloso, a canção que recordo com mais prazer.
E finalmente, sexta de muitas mais que poderia enumerar, a que sempre se mantém mais presente, talvez porque encerra em si mesma a pergunta essencial, para esta estranha escolha pelo que se fica pelo segundo lugar, permanece na sombra, desfavorecido ou alternativo, a salvo das luzes o do exagero das repetições, O Que Será, de Chico Buarque com Milton Nascimento, numa gravação de 1978.
Agora que me lembro, não resisto a trazer Amália a estas memórias com uma das suas menos solares canções, Estranha Forma de Vida, e também Marisa Monte com o seu belissímo Infinito Particular, que tão bem cabe neste universo.
É a palavra que me ocorre depois de ver o filme, O Cavalo De Turim.
Uma semana depois de Cosmopolis, o seu inverso na forma, completamente assimétricos , e a sua total semelhança no conteúdo. Onde um mostra montes de gente no bulicío da grande metrópole, o outro, duas pessoas na quietude do isolamento de uma casa no meio de nada; onde um se esfalfa em frívolidades, em monólogos, diálogos, uso de tecnologia de topo, de sexo, de informação, tudo ao serviço de uma só pessoa, o outro é o paradigma do austero, da frugalidade monástica, na economia asfixiante das palavras e dos gestos, na absoluta ausência do desejo sexual e na demonstração máxima da aceitação terna. Onde um raspa a superficíe, o brilhantismo da rapidez e da embalagem, o outro afunda-se lentamente na essência dos conteúdos. É aqui que se encontra o que têm de semelhante aquele milionário, e aquele par, pai e filha, a mesma desesperança, a mesma tentativa do esquecimento pelo anestesia, a desistência. Nesta, talvez a diferença fulcral, uma desesperada, fuga, a outra assumida, tranquila.
Mais de um século depois, dois conflitos globais que mataram milhões mais um sem fim de outros conflitos, inúmeros pensadores que revolucionaram a forma como a sociedade interage politica, social, económicamente e, sobretudo, todo um mundo tecnológico que a ciência colocou ao nosso dispôr, tornando a vida de todos, ou quase todos nós muito mais fácil e, como resultado, a mesma escuridão.
No único momento do Cavalo De Turim onde um personagem diz mais que meia dúzia de palavras, autênticas sentenças, juízo final, percebemos que podiam ser proferidas hoje. A presença do cavalo, a forma como ela vai evoluindo, voz na consciência dos racionais, primeiro a desistir, vítima e benificiário do instinto, funciona como contraponto para a ação das pessoas, da sua humanidade e inteligência. Todo o filme, visualmente muito belo, remete para a necessidade de dar um sentido à vida, pelo aprofundamento, atentividade e concentração em tudo que nos rodeia, na procura de uma harmonia que traga significado às coisas. Tarefa extraordináriamente dificíl, normalmente vítima dessa assassina que é a rotina. O filme, ele próprio, faz-se rotineiro para nos dar prova fisica da necessidade dessa resiliência, absolutamente indispensável para resistir à tentação da falsidade do rápido, do engano do fácil, da mentira do disfarce.