Vem mesmo a propósito, já depois da hora, neste caso num novo ano, refletir no que aconteceu ao 92º minuto do último Porto-Benfica, uma fantástica metáfora do que um mesmo momento pode significar enquanto céu e inferno, também como o aproveitar, ou não, de uma última oportunidade. Terão havido inúmeros desses momentos durante o ano passado, lembro-me de quatro pelo que representaram em si mesmos ou de como, quando já poucos o previam, abriram novos horizontes.
Rui Moreira/Luís Filipe Meneses
A vitória do independente pode ter sido muito mais do que uma surpresa. O recente endendimento entre os presidentes das câmaras do Porto, Gaia e Matosinhos, no sentido de trabalharem em conjunto relativamente a alguns assuntos que a todos diz respeito, é disso um excelente indicío. Talvez, no ultimo momento, ainda seja possível reconquistar a credibilidade dos políticos, quase completamente desbaratada ao longo dos quarenta anos que leva a democracia em Portugal. Agora a palavra foi dada aos independentes obviamente porque, e muito bem, os eleitores associam aos partidos tudo o que de mau essa gente tem feito. Do clientelismo, da hipocrisia, da prevalência da mediocridade como prémio a lacaios, etc., etc., tem resultado boa parte do atual estado de coisas, e os partidos, propagandeados como algo mais ou menos etéreo onde a culpa morre solteira, têm escapado a um juízo popular esclarecido. Até agora. Não deixa de ser curioso que, mais uma vez como em tantas outras ao longo da história, seja o Porto, as suas gentes, a liderar esta que pode vir a tornar-se uma pequena revolução na maneira de estar dos políticos. Algo que se repete desta maneira há-de querer dizer alguma coisa. A vez à sociedade civil!
Bergoglio/Ratzinger
Há já muito tempo que a Igreja Católica tem vindo a perder os seus fieis aos milhões, quer para outras grandes confissões monoteístas, quer sobretudo para pequenos grupos formados por gente oportunista e esperta, que observando como a podridão a mentira e a enorme falta de bom senso, têm dominado aquela igreja, disso se tem aproveitado para recolher as boas graças de um crescente número de pessoas altamente frustradas, ainda e sempre vítimas da miséria material na qual vivem, mas para essa condição agora alertadas fruto de uma sociedade global, superinformada, que faz precisamente do consumismo e da inveja o seu principal motor de crescimento. O barulho em volta da pedofilia no seio da igreja católica é a face mais visível da soma destes efeitos. Com Bento XVI no vaticano a sensação que passava, porventura injustamente, mas assente numa postura rigída, ciciante, sacralizada, obscura porque fechada, era que seria impossível fazer-se luz sobre essa tão terrivel matéria, especialmente sobre o que ela representava enquanto espécie de paradigma do obscurantismo por ali reinante, como se não houvesse alternativa à eternização dos dogmas. A chegada de Francisco I, muito próximo daquilo que já parecia ser a fatal queda em desgraça do catolicismo, pode trazer, como parece estar a acontecer, uma renovação de um conjunto de valores absolutamente essenciais, na humanização da desvairada fuga para a frente em que se tornou esta vida do ter ou não ser.
Snowden/Big Brother
Quando entre 1946 e 1948 George Orwell escreveu 1984, onde, dando como sua origem o comunismo, inventou o Big Brother, o olho sempre presente que a todos vigia, persegue e condiciona, não podia estar mais longe de imaginar como estava certo, ainda que não da dimensão global que o dito haveria de adquirir, e muito menos que teria a sua sede no ocidente. Em nome da defesa contra o terrorismo foi criada uma rede global de espionagem sobre quase literalmente toda a gente, que informa a todo o momento o que transmitimos uns aos outros. Fazendo uso desse incrível evento que é a internet, hoje aquilo que ontem representaram a descoberta da roda, ou a industrialização, está a reduzir-nos a meros robôs tementes do que possa ser a vontade ou a opinião dos senhores do mundo. O facto de Edward Snowden ter-se revelado durante a admnistração Obama, pode conduzir a alguma travagem e decência, neste processo que estava a descambar para um fundamentalismo que não podia conduzir a nada de bom, basta pensar-se no fenómeno Wikileaks, ou na forma como a questão foi, e continua a ser tratada. Ninguém será inocente para pensar que a vigilância vai acabar, não vai e ainda bem, mas os critérios devem ter mais bom senso, e, mesmo contra tudo e contra todos os interesses e lobbies, ninguém melhor que Barack Obama para liderar essa tomada de consciência e promover a mudança. Um mundo sem segredos, tal como a vida do mais comum dos casais, será absolutamente impraticável porque contranatura.
Humildade/Sobranceria
Na época passada o Benfica perdeu sempre ao minuto 92 três jogos que davam títulos. Um deles de forma algo injusta, com o Chelsea, outro por acreditar que a coisa estava ganha, com o Guimarães, ambos últimos jogos de competições relativamente curtas a eliminar, e o outro, com o Porto, sobre a meta de um campeonato com a duração de meses, por manifesta sobranceria. Não aconteceu ao longo desse jogo mas já vinha de trás, dois ou três jogos antes. É possível encontrarem-se razões para as diferenças que vieram resultar no céu para o FCP e inferno para o SLB, em questões bem mais profundas, e desde há muito enraízadas na sociedade portuguesa, como sejam uma certa maneira de estar relaxada, amante das aparências, vaidosa e bem falante, originária num meio ambiente habitualmente morno em todos os sentidos, e que é a natureza do último terço de país a sul, e considerávelmente concentrada, via centralização, em Lisboa. Mas isso era estar a falar de filosofias, do que é já intrinseco. Aquilo que se passou naquele nonagésimo segundo minuto, e que pôs o estádio do Dragão na mais absoluta loucura vs mais profunda tristeza, foi provocado quase exclusivamente por dois homens radicalmente diferentes, os quais acabam por encerrar em si mesmos, nas suas personalidade, tudo o que atrás ficou escrito. Simplificando, o mais velho, simpático e extrovertido, muito mais experiente e conhecedor a fundo de futebol, um tanto inseguro e cuja linha mestra da sua personalidade é a vaidade. O mais novo, pragmático e introvertido, mais inexperiente, muito autoconfiante e sobretudo humilde. Foi isso que se viu na ponta final do campeonato, e muito especialmente naquele momento mágico/terrorifíco, em que um dava pequenas e rídiculas corridinhas de alegria a chorar copiosamente, enquanto o outro se deixava cair de joelhos, com uma máscara de profundo sofrimento esculpido no rosto, numa figura estética belissíma. Também uma vitória da ética sobre a estética.