Tenho saudades do meu cão
Tenho saudades dos meus gatos
Tenho saudades das minhas mulheres
Das que tive e das que tenho
Tenho saudades do meu filho inocente
E de sentir que era o seu héroi
Tenho saudades da minha mulher ingénua
E de quando todo o seu corpo ria para mim
Tenho saudades dos meus amigos
E pena por não lhes ter dito tudo
Tenho saudades de quando era novo
Tenho saudades dos primeiros livros
E de neles deixar de ser eu
Tenho saudades de morrer na música
E de ressuscitar com gente ao meu lado
Tenho saudades do meu pai protetor
Tenho saudades do meu irmão pequeno
Tenho saudades da minha mãe nova
Tenho saudades do mar da minha infância
E de nele mergulhar nas ondas frias
Tenho saudades do cheiro da minha prima
De lhe vislumbrar os pelos púbicos e enlouquecer
Tenho saudades do olhar da minha tia
Tenho saudades das feridas nos meus joelhos
E da minha cegueira também quando corria
Tenho saudades da felicidade vir com o sol
Tenho saudades de seguir os carreiros de formigas
E de sentir o cimento quente na cara
Tenho saudades das corridas de caracois
Dos caminhos de baba e do campeão lá no alto
Tenho saudades da tristeza chegar com as núvens
Tenho saudades de gostar do frio
Tenho saudades de ter medo da chuva forte
Tenho saudades de me sentir perdido com o vento
Tenho saudades dos primeiros filmes
E de me apaixonar pelas atrizes
Tenho saudades de sair do cinema a flutuar
E com os jeitos, e a ser, o meu héroi da fita
Tenho saudades do sabor do primeiro beijo
E da euforia calma, e da volupia, que ele provocou
Tenho saudades do eu que me chega pelos cheiros
Tenho saudades da bondade dos vizinhos
Tenho saudades dos domingos nas Antas
Tenho saudades da alegria pura e cristalina
Tenho saudades das sensações absolutas, inteiras
Tenho saudades dos climaxes loucos
Tenho saudades dos pequenos desgostos devastadores
Tenho saudades da tristeza infinita
Aquela que aperta a garganta e faz correr as lágrimas
Tenho saudades dos sabores perfeitamente acabados
E dos momentos que as suas memórias me trazem
Tenho saudades de me sentir completo
Tenho saudades dos medos profundos
Tenho saudades de admitir uma estética perfeita
Tenho saudades da possibilidade da ética total
Tenho saudades do ódio puro
Tenho saudades do espanto ao descobrir
Tenho saudades do conforto no voltar
Tenho saudades das casas onde vivi
Tenho saudades dos carros que tive
Tenho saudades do pião, do arco e da gancheta
E da fisga , e dos carrinhos Matchbox
E da bolas azuis da Nívea na praia e do seu cheiro
E de fazer Legos diferentes da fotografia da caixa
Tenho saudades dos orgasmos primordiais
E da plena satisfação de existir que lhes seguia
Tenho saudades de corpos femininos jovens
E de os ter nús ao meu lado em tardes quentes
De, na penumbra, pensar que era realmente feliz
Tenho saudades de desesperar de saudades
Das que sentia logo após deixar um meu amor
Tenho saudades de sentir a esperança no verde
Nas árvores, nas florestas, nos prados do campo
Tenho saudades de ficar olhar as núvens brancas
De vê-las avançar lentamente no azul maravilhoso
Tenho saudades do céu estrelado na noite algarvia
No meio da serra escura, sem frio e no silêncio total
Tenho saudades da água morna e da areia fina
E do peixe grelhado e do vinho branco gelado
Tenho saudades de jogar ténis à chuva, só com meias
Do meu filho, pequenito, a correr atrás das bolas perdidas
Do meu irmão e eu jogarmos como não houvesse amanhã
Tenho saudades do nosso primeiro jardim
Das dálias vermelhas sangue, dos veludos enormes
dos junquilhos amarelos, dos gladíolos elegantes
E multicores, das zínias e das tulipas brancas
E do meu pai vergado a libertá-las das ervas
E do cheiro a terra molhada após a rega do fim da tarde
E dos lanches solitários dos dias de Verão
Do sabor do pão, do queijo, do fiambre e do Sumol
Depois de sorver magníficas estórias do Mickey e do Pateta
E do Ene 3, e do Ogan, da Mademoiselle X, e do Kalar
Tenho saudades de acordar sem conhecer o dia que chega
Tenho saudades de quando descansava enquanto dormia
...
Tenho saudades de mim