Ontem, durante o intervalo do jogo com o Málaga, o descanso do guerreiro, dei comigo a apreciar os meus companheiros de luta das quase exclusivamente vitoriosas batalhas do Dragão.
Ainda antes, na habitual viagem pedestre entre a Ponte de D. Luís e o estádio, tinha vivído uma experiência estranha. Perto de minha casa há um talho cujo dono se chama Carlos, é pequenito e daquele tipo de pessoas que só sabem falar aos gritos. Por aqueles lados, e num raio bastante razoável, quem canta a alvorada não são os galos, é o Carlos. É que o homem em vez se ficar por onde tem a carne ao dependuro, não, planta-se na porta do estabelecimento e arredores berrando em todas as direções, desde os bons dias a toda a gente, até a perguntar à dona qualquer coisa se é do lombo ou da rabada. Vem isto a propósito do percurso, Porto acima, até ás Antas, onde o Carlos me apareceu multiplicado às dúzias. Porque é que será que boa parte dos espanhois só sabem falar alto? Impressionante! Num percurso para aí de três quilómetros ouvi falar mais, mas muito mais, em castelhano que em português.
Curiosamente, durante o intervalo, mantiveram-se estranhamente sossegados permitindo-me uma reflexão sobre todos os meus vizinhos, é que não faltou nenhum. De nós, sou sempre o primeiro a chegar e a sair. Assim uma espécie de FIFO (first in first out), deve ser mais uma das manias que me ficou das teorias da produtividade e afins. De forma que os vejo a todos chegar. A coisa passa-se num ritmo uniformemente acelerado. Primeiro a menina queque, que ontem vinha particularmente artilhada, uma profusão de símbolos do FCP, tudo de altissíma qualidade, que, não obstante ali na zona só estarmos os dois, olimpícamente me ignora, à parte umas furtivas olhadelas que se esforça por disfarçar, e que quanto mais próximo o pontapé de saída, menores são os espaços entre uma série de tiques próprios de uma menina com pedigree, como por exemplo aquele jeito muito especial de coçarem o nariz com a palma da mão, totalmente aberta, num largo movimento ascendente, ou os relances em volta com expressão algo enfadada de quem não tem paciência para vulgaridades. Depois vem o grupo da frente. São três, o morcão, o esperto e o porreiraço. O primeiro é mais ou menos como eu (lá está...) sempre calado, o segundo é pouco menos que insuportável porque, para além de saber tudo, nada está bem. É o treinador que não presta, este e aquele jogador que...o homem desfaz-se em explicações técnicotáticas que dispara em todas as direções, deixando a assistência em estado catatónico e acabando sempre a falar sózinho. É o porreiraço que me salva, e sobretudo salva o amigo de ser linchado, cada quinze dias, pela multidão circundante. De repente começa a chegar toda a gente: a boazona louraça que lança flamejantes chispas em volta que afirmam, sou pequena e boa!; o distraído que me faz sempre levantar duas vezes por se enganar na fila, apesar de eu, desesperado, tentar repetidamente avisá-lo; aquele casal de idosos que teima em ir à bola mesmo passando quase todo o jogo a dormitar debaixo de um barulho ensurdecedor, e demorarem meia hora a chegar às suas cadeiras deixando toda o pessoal à beira de um ataque de nervos; o gaijo que durante todo o desafio manda bocas à nossa equipa e ao qual, já várias vezes, estive para lhe perguntar qual era o numero dele de sócio do SLB; o par de monhés de alta casta, de trás, que para além de me obrigarem a lançar-lhes olhares de poucos amigos para ver se deixam de me massacrar as costas com os seus ilustres e pontíagudos joelhos, passam a partida a lançar tiradas inteligentes, pérolas tipo: o fulano de tal hoje não me está a convencer referindo-se a este ou aquele jogador ou, acho que me esqueci de desligar a água da piscina. Quanto ao meu vizinho própriamente dito, o do lado, já bem entradote, magnata do comércio local, entretém-me a mostrar as mensagens no telemóvel de uma das suas cinco namoradas cinco (sempre casadas, garante, inclinando-se todo para trás sem sair do lugar, com o pequeno corpo todo teso, cenho franzido e um movimento rápido da mão direita para que não fiquem dúvidas, enquanto me desvenda a sua preciosa regra de ouro!), a combinarem a hora a que se vão encontrar mais logo para um pézinho de dança lá numa das agremiações da terra, ou então insistindo em aconselhar-me o uso de óleos vários e outras revigorantes poções mágicas, apesar de eu ter idade para ser seu filho (nessas ocasiões dou comigo a pensar, aflito, que se passa?).
E depois claro, há aquele tipo meio esquisito que já anda por ali há anos, que parece chegar sempre de véspera e se estica na cadeira como quem está em casa (e estou!), quase não fala, mas quando sucedem golos importantes como o de ontem, parece tolinho a saltar aos gritos, preparado para abraçar fraternalmente qualquer um deles se o deixassem (mas não deixam, ficam é meio desconfiados a olhar de lado, a ver quando me vai dar uma coisa), ou mesmo um dos Carlos, se não estivéssem do outro lado do estádio.