Por coincidência vi no mesmo dia dois filmes que abordam o sofrimento dos africanos fora do seu continente, Django Libertado, de Quentin Tarantino, e Terra Firme, italiano.
A única coisa que têm em comum é mesmo o sofrimento dos negros, em tudo o resto não podiam ser mais diferentes. Tarantino realiza mais uma desenfreada paródia valendo-se, uma vez mais de um assunto muito sério, o racismo e a escravatura. Penso que já pouca pessoas irão ver filmes deste genial realizador na expectativa de ver o tema ser tratado de uma maneira minimamente próxima daquilo que poderia ter acontecido na realidade. A questão talvez seja dele estar a passar a fronteira também no conteúdo quando, até agora, provávelmente só o tinha feito na forma, e diga-se, sempre com um brilhantismo sem par. Neste filme, ao longo de todo ele, nunca me abandonou um certo desconforto relativamente à maneira como os negros são filmados, como se sempre pairasse uma certa indignidade na forma como são retratados. Dá a impressão que Tarantino se preocupa essencialmente em encontrar um tema consensual no que à sua importância diz respeito, e depois faz um filme gore com ele. Montes de sangue, de situações de violência extrema, cores berrantes, caras atraentes, picos de ação demoníaca a terminar longos períodos de diálogos sarcásticos de preparação. Depois de uma obra prima absoluta como foi Sacanas Sem Lei seria muito dificíl agradar ao mesmo nível, talvez por isso pareça estarmos a assistir a uma demonstração de desespero que vai aumentando, à medida que o realizador se apercebe disso mesmo. Ainda assim vale a pena só para ver Christoffer Waltz agora no papel de good guy, por oposição com o bed guy, nos Sacanas... mas com aquela mesma verve hipnotizante que nos faz ficar a chorar por mais.
Terra Firme é mais um daqueles magnifícos filmes italianos que pegam num assunto e no-lo servem tal qual, ou muito próximo de como realmente aconteceu. Uma ilhota de pescadores entre o norte de Africa e Itália, as vidas pequenas dos seus escassos habitantes, uma luta pela sobrevivência dividida entre os costumes de sempre e a modernidade consubstânciada pela presença dos turistas no verão, dramas que se desenrolam dentro e entre famílias, e o constante aparecimento de pequenas embarcações(?) carregadas de negros à beira do colapso, na demanda de uma vida melhor. Onde uns só veêm passado, atraso e desesperança, outros veêm o futuro, a esperança numa vida melhor. A importância dos pontos de vista, da perspetiva de onde é encarada uma determinada realidade, os diferentes graus de ambição. Quando estas duas visões são confrontadas, lenta e silenciosamente, porque custa dar o flanco, há o despertar para o essencial das coisas, para a valorização dos sentimentos eternos e, com eles, a redenção. Os truques são poucos. O realismo das situações, dos locais das filmagens, das pessoas. Alguma música, discreta, eficaz e escassa e, isso sim, a belissíma italiana do costume, á qual neste caso, ainda juntaram uma não menos bela negra.
Estes dois filmes poderiam muito bem ser vistos como o paradigma, na sua versão mais radical, de onde são originários. De uma Europa velha, cansada, cheia de problemas, mas também sábia e capaz de aceitar, e de uma América jovem, vigorosa, sedenta de ação e mudança. Dois mundos muito diferentes.