semtelhas @ 12:58

Sex, 06/04/18

 

 

Quando há meia dúzia de anos atrás o FCP tentou fazer o mesmo que tinha feito um quarto de século antes, dar um salto qualitativo, operar uma mudança de filosofia no clube, naquela altura sacudindo a imagem de clube de provincia para a de nacional, vinte e cinco anos depois de nacional para europeu e mundial, esqueceu-se ou minimizou um aspecto fundamental, é que se, ele sim, se tinha transformado num exemplo de excelência assente em princípios de meritocracia, o país, esse, mantinha-se refém da mediocre vassalagem ao poder em todos os sectores, também, óbviamente, no futebol.

 

Abandonar a "esquizofrénica" táctica de criar, que no caso até é bem real, um inimigo para juntar as tropas, trocando-o por um suposto conjunto de novos princípios assentes básicamente na chamada qualidade, aqui consubstânciados na contratação de um treinador caro, um conjunto de jogadores igualmente de custo muito acima da média do que era habitual, e a criação de um ambicioso projecto de longo prazo para a formação, tentando, com tudo isto, mudar os pressupostos em que assentava o sucesso do clube do tal "freio nos dentes" para uma nova filosofia, como quem muda do fato-macaco para smoking, acabou por sair furada porque, digamos, o ambiente não era, não é, alguma vez o será?, favorável.

 

Aquilo que parecia vir a ser um autêntico milagre este ano está cada vez mais distante. A realidade actual nada tem a haver com a do passado recente, por muito que custe aos portistas estes últimos anos, e não vale a pena sequer voltar a referir como nem porquê, o clube que, desde sempre, é o do regime, tem vindo a capitalizar uma vantagem quase impossível de superar, afinal tem tudo, ou quase se excluirmos a ingénua(?) noção de justiça do seu lado, está a tornar-se, e se-lo-á cada vez mais, uma luta de tostões contra milhôes. Como triste "cereja em cima do bolo", acresce que aquele que é talvez o paradigma de que o FCP é muito mais que sómente um clube de futebol, o seu canal de televisão, um caso aparte no panorama global enquanto espécie de frente regional muito para além do desporto, é sustentado ,naturalmente, pelo clube e, por este andar...

 

Resta a esperança, essa sonhadora, que o Porto Canal vá criando a sua auto-subsistência, que o FCP continue a operar autênticos milagres, nem que para isso tenha que voltar ao fato-macaco dando um passo atrás e depois dois à frente, porque quanto ao país e à tal filosofia da meritocracia será melhor esperar sentado ou, como dizia o outro, isto não é economicamente viável, vamo-nos safando com uns dinheiros que chegam de fora porque, separados de Espanha, continuaremos sempre sendo o "Marrocos de Cima".


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semtelhas @ 15:45

Seg, 04/09/17

 

Sentados numa plateia nas rigorosas dimensões da exatidão do infinito estão os misteriosos senhores Tempo e Espaço, no palco, correspondente a esta casa comum que denominámos por Terra, os actores, são as pessoas, sistemáticamente substituídas, e, em fundo, um cenário que nunca muda, ou melhor, só difere em pequenos pormenores, aqueles resultantes da constante alteração da chamada ciência, um processo vulgarmente designado por evolução. Olhar para este quadro desde que tal é possível, e registá-lo, chama-se História.

 

Millôr Fernandes, o comediante brasileiro, na verdade um grande filósofo, dizia que a felicidade começa pela constatação do óbvio, eu, modéstias à parte, acrescentaria que continua com a sua aceitação, a qual, estranhamente, nunca é atingida na sua plenitude, daí a inalcançável e sempre perseguida felicidade total.

 

Vem isto a propósito dos cada vez mais cantados, em tom de desespero, tempos loucos que vivemos. Realmente se se atententar em meia dúzia de factos, dos, digamos, mais ou menos universalmente considerados como definidores  do estado da civilização, é fácil cair-se na tentação de que se está a assistir a uma espécie de fim da História, acontece pórem que se trata da simples repetição do que ciclicamente aquela nos mostra. Os Velhos do Restelo, sempre existiram, existem e existirão.

 

São, por isso, extremamente exageradas todas aquelas infindáveis manifestações a esse propósito, o assustador fim dos tempos, venham elas sob a forma de lancinantes lamentos, inteligentes avisos, ou ridículas ameaças. Acabou o desejo? agora o acto sexual é mecânico e frio?, os empregos vão acabar? o que se vai fazer a milhões de pessoas? vive-se mais tempo mas "morre-se" em vida? a arte está a morrer às mãos do pragmatismo fruto do endeusamento da vulgaridade bem promovida? Provávelmente tudo verdades, contudo falsidades enquanto anúncio manifestamente exagerado da morte da civilização.

 

Somos intrinsecamente conservadores, parece portanto, mas não é, muito mais fácil resistir, maldizer o novo que tememos porque a ele temos grandes dificuldades em nos adaptarmos, dá muito trabalho, do que não tentar contrariar, como dizia o sábio, o óbvio, até porque a sua aceitação seguramente muito contribuiria para a felicidade de quem o conseguir fazer. Transmitir aos mais novos alguns truques, no sentido mais nobre e lato do termo, que se foram aprendendo é uma coisa, outra, muito diferente, é condescender com algo que se acredita, erradamente, conduzir ao precipício. Aprenda-se então, hoje com os filhos, amanhã com os netos.

 

Voltando ao princípio, os senhores Tempo e Espaço, na sua incognoscível infinitude, ininterruptamente observando da primeira fila dessa plateia com as medidas exatas do infinito, são implacáveis no seu avanço(?), na indefinição para espaciais perguntas, mas são pródigos em exemplos ao longo da História, as pessoas mudam, mas o cenário, esse, só em pequenos detalhes, aqueles também resultantes dos ditos cataclismos globais, invariávelmente provocados pelos mesmos cientistas actores, como poderia o cenário fazê-lo? Aproveitemos pois tal dádiva! Não é óbvio?

 


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semtelhas @ 12:07

Qua, 10/05/17

 

Este jardim à beira-mar plantado está prestes a viver um autêntico Dia de Portugal e da raça, como tão bem o definem os respectivos paradigmas, mas que resolvo substituir por má lingua a qual, quase exclusivamente num execício de estilo, opto utilizar.

 

Senão vejamos, num único dia, o próximo sábado 13, e por ordem cronológica, vem cá o papa Francisco, o Benfica vai ganhar o seu primeiro tetra e, the last but not the least, pela primeira vez vamos ganhar o Festival Europeu da Canção. Se isto não merece ser elevado ao primeiro lugar do pódio dos dias maiores de uma nação então não sei o que o mereça.

 

Na verdade nunca lançar os fogos, como diz a nossa maior bandeira o ilustre CR7, fez tanto sentido. Começa desde logo pelo centenário de um dos maiores embustes da História da religião que dá pelo nome de Fátima, arrancada e ferros pela igreja católica nos idos anos vinte do século passado, tentando assim inverter a brutal tentativa do recém instaurado regime republicano atirar para o lixo da História do obscurantismo de então, e não agora?, protagonizado pela santa igreja católica. Se nos primeiros anos tal atitude fez corar de vergonha muita gente minimamente decente e com alguma honestidade intelectual, os anos e o fabuloso negócio em que aquilo se tornou, trataram de lavar a imagem da coisa de forma a que hoje haja uma espécie de acordo tácito entre o poder instituído e os donos daquele sagrado espaço, consubstanciado no princípio de que em troca do silêncio que consente dos religiosos e que rende votos, os políticos fecham os olhos aos impostos de muitos milhões por ele devidos até hoje. Quanto ao tetra do glorioso acontece num ano em que nem era preciso o célebre manto protetor tal foi o ineficácia de dragões e leões. No entanto, num misto de vale mais prevenir que remediar e a incontrolável tentação de responder ao vicío, assistiu-se na mesma à mais desavergonhada ajuda de todos os poderes ligados à bola no sentido de levar ao colo o SLB até ao título. Mais do mesmo afinal de contas, se excluirmos aí um quarto de século durante o qual os ventos da democracia favoreceram um ir ao são, com alguns exageros próprios de um abrir uma garrafa plena de pressão imposta por décadas de mordaça, concedo. Finalmente temos um Salvador, o tal rapaz, misto de hippie/beto/kamikase da ingenuidade, segundo afirma sempre que se sente seguro em qualquer lugar comprova-o fazendo cócó, entre outras preciosidades, que através de uma canção que é um somatório de clichés estilísticos resulta numa bonita melodia, isto num país que já lá levou Lusitânia Paixão ou Chamar a Música, só para ficar entre canções ditas ligeiras, que nos vai elevar ao olimpo desse tão importante evento hoje muito mais, e mais um, fastidioso espetáculo televisivo, onde as canções pouco contam, para arrebanhar as massas ululantes, entre muita maquilhagem que os e as torna mais ou menos todos iguais, um barulho infernal que os põe moucos aos trinta e tal, e continuadas agressões visuais que é suposto esmagarem as espantadas criaturas. 

 

Enfim, tudo a condizer. Valha-nos ao menos um presidente da república e um primeiro ministro que o que mais gostam é de jogar ao sério um com o outro, a ver qual deles é o primeiro a confessar que o importante é fazer de conta que está tudo bem, circunstância em que ambos têm o mestrado e doutoramento, espécimes raros por estes lados mais dados a choros e lamentações, um exercicío de confiança como agora se diz,  tão notóriamente importante nestes dias do virtual, particularmente nas finanças. Por isso vivam os três f's, Fátima futebol e fado. Quem disse que tinham acabado? Fomos é pioneiros!

 


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semtelhas @ 12:31

Qua, 24/08/16

 

Goooooloooo! O grito, rasgando o manto tépido de sereno silêncio que cobria a luminosa noite do Porto vista das mais altas escarpas de Gaia, irrompeu inesperado para os muitos que por ali deambulavam anestesiados pela perfeição da estética, mas também profundamente desejado por outros que, como eu, ansiosamente o aguardavam. Na verdade, no meu caso, tratara-se de uma fuga na tentativa de mitigar o sofrimento perdendo-me por lugares percorridos vezes sem conta, deste mas especialmente daquele lado da ponte. Demorei-me sobretudo naquele miradouro sobranceiro ao rio, dele a uma escassa dezena de metros, antes quase completamente escuro oferecendo por exclusiva companhia o suave marulhar do rio convidando às caricias que eu e a então ainda só namorada apaixonadamente trocavamos, agora um dos mais trepidantes espaços da zona, pleno de luz, um verdadeiro caleidoscópio, música e gente para todos os gostos, como que paradigma de todo o resto. Pressinto uma espécie de nostalgia recordando aqueles feios porcos e maus mas meus sítios de antigamente. Afasto o pensamento niilista quando me apercebo que do que tenho saudades é da idade que então tinha. Lá mais adiante um português baixinho e anafado, todo de preto, poupa à Elvis, enquanto a partenaire convenientemente loura e razoávelmente atraente se vai esfalfando num vaivém que se pretende sedutor mas cuja gordura excessiva vai traindo, canta numa voz surpreendentemente imaculada e num belo sotaque castelhano Volare, a eterna canção italiana. Penso, será provocação?, mas não, simples irónica coincidência.

 

Que belo momento este! Tendo por fundo esta magnifica cidade que tão maravilhosamente se vem reinventando, mostrando-se ao mundo em toda a sua plenitude histórica, mas muito especialmente enquanto espaço previligiado sob o ponto de vista humano e cultural, ouço e sinto a alegria proporcionada por um daqueles que nas últimas décadas tem sido um dos seus principais embaixadores, emprestando-lhe a, neste caso, quase contraditória faceta de excelência via enorme demonstração de profissionalismo, inquebrantável vontade, inquestionável classe. Assim se formam vencedores e se faz o futuro. Assim se cumpre o sonho de uns e se inflinge o pesadelo a outros, como àquele exministro do mais surreal governo desta nossa frágil democracia, espécie de Flopes, honra ao chefe, mas ao contrário, em vez de pateta alegre, antes triste e ressabiado. Assim de dá mais um passo na luta contra a mediocridade inevitável num país maioritáriamente movido a inveja. Aquietado, abandono o excelente miradouro sobre a cidade, um bem conseguido e altaneiro bar/café, sob o olhar descontente mas permissivo do gerente pelo não consumo, condescendências de hora tardia. Saboreio lentamente o doce apaziguamento e vivo já as batalhas que se aproximam, tão habituais que constituem um vício, vinte e uma vezes tal como só mais outros dois clubes!, do qual já não podemos prescindir. Ainda antes de me juntar à familia abandonada à sua sorte perante tão grande desafio, a moer remorsos pela falta de coragem e solidariedade, um último relance ao cenário que, mais uma vez, me embalou até a um Porto seguro.


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semtelhas @ 11:33

Seg, 11/07/16

 

Não é que já não me tenha acontecido noutras ocasiões, por alturas de festejos clubísticos, mas há sempre aqueles olhares reprovadores que acusam árbitros, porrada, sistema etcetal. Desta vez senti mesmo aquela aura de campeão a pairar ali em cima, a brilhar algures a poucos cêntímetros da minha alegre carola! A novidade é que para além de ninguém se fazer esquisito quase todos me acompanhavam ostentando a ditosa coroa. Fantástica sensação esta de pertença! Como alguém ontem dizia é como se se tenha acabado a mania do complexo de inferioridade para sempre.

 

A receita resultou de uma improvável mistura entre talento irreverente e concentrada disciplina servindo-se um magnífico prato de inteligência! E quem melhor para o fazer que um homem especialista em cálculos matemáticos profundamente crente na ressureição? Foi vê-lo durante todo o percurso sistemáticamente contido mas exibindo uma confiança sincera e irrevogável, para, finalmente, imediatamente após a certeza que estaria no jogo decisivo, soltar toda a alegria conseguindo assim passar a mensagem essencial: libertem-se rapazes, descansem que agora Ele acaba o serviço, como se adivinhasse que O dito viria disfarçado de Éder, o último dos suspeitos, de tal maneira que nem os suprassumos franciús desconfiaram! Aliás, a este respeito, devo dizer que salvaguardando uma cultura ímpar, nunca duvidei que o melhor dos franceses sempre foram as francesas...

 

Agora, até pelas incríveis circunstâncias em que o fenómeno se deu, como presidente um homem com uma "bagagem" de tal ordem que toda a menoridade, chame-se ela prepotência, vaidade ou falsa responsabilidade, soam  ridículas, passando por um primeiro-ministro cujo humanismo pragmático desarma por completo os profetas da desgraça, até uma conjuntura externa que parece caminhar apressadamente para uma espécie de "finalmentes", apetece desejar que os astros continuem a alinhar-se a favor deste pequenogrande país, porque enfim se terá percebido que a sorte ficará inevitávelmente um fato muito largo, ou apertado, caso não se adote o tal regime, o que dá muito trabalho. 


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semtelhas @ 11:41

Sex, 10/06/16

 

Dia feriado. O passadiço parece a rua Stª Catarina à hora de ponta mas, ainda assim, não são poucos os que resolvem levar os quadrúpedes a passear. A maior parte leva-os pela trela há no entanto sempre uns quantos que os deixa soltos. Desde umas centenas de metros atrás havia reparado numa mulher, aí pelos trinta, que exibia notória dificuldade e insegurança tentando segurar pela trela um bem disposto e enorme labrador de pelo quase branco. Sempre que se cruzavam com outro cão o bicho, claramente por raramente o fazer, excitava-se imenso obviamente contagiando o seu semelhante.

 

Aconteceu quando seguíamos numa daquelas partes em que o caminho de madeira se eleva  relativamente ao chão, no caso talvez metro e meio a dois metros, Na ocasião estava já bastante próximo do duo de que me vinha paulatinamente aproximando. Súbitamente, como circulava muita gente a visibilidade não era a melhor, surge um doberman, como uma seta, castanho claro, não muito grande e ainda jovem mas já com aquele porte que distingue a raça. Aparentemente nada aconteceria caso o irrequieto labrador não demonstrasse incontrolável entusiasmo e a intenção de "cumprimentar" o primo afastado. Assustado o doberman reage mordendo-o ao de leve levando a que o pobre labrador imediatamente desse um salto para trás caindo no pequeno abismo.

 

Aquilo a que se assistiu depois foi um misto de horror e incredulidade, ainda por cima naquele cenário de pacífica fruição das maravilhas de uma natureza que convidava, quase obrigava, todos os sentidos a viverem a beleza das cores, a magnitude das fragâncias libertadas pelas plantas recentemente molhadas, o calmante rumorejar do mar sereno, a ternura da brisa morna na pele. Aflita, a mulher tentou puxar o cão que se debatia frenéticamente pendurado pela trela presa debaixo das patas da frente. Arrastada face à evidente impossibilidade de içar um peso de mais de trinta quilos altamente potenciados pelo movimento intenso, num movimento cuja rapidez e engenho só o instinto permitem, consegue passar o resistente artefacto por cima das cordas que unem os troncos a delimitar o passadiço, ganhando assim cerca de um metro. Tudo isto acontece em escassos segundos enquanto os transeuntes ou se afastam rápidamente ou pura e simplesmente paralisam face à ameaça do doberman que, entretanto, como que esperando o reaparecimento do labrador para o respectivo ajuste de contas, distribuía ferozes latidos impedindo a aproximação de fosse quem fosse, nem daquele que parecia tratar-se do dono a multiplicar-se em ridículas supostas ordens infalíveis, uma espécie de linguagem de código que o bicho nem ouvia.

 

Foram dois ou três minutos naquilo até que, completamente descontrolada, a mulher, tinha amarrado fortemente a trela ao pulso direito, gira sobre si própria a uma velocidade incrível, talvez na tentativa de ganhar impulso e trazer o animal até à plataforma de madeira, mas este, vendo o que o esperava finca as patas por baixo daquela levando a que a dona, num inacreditável exercício de contorcionismo, acabe por ficar ela própria com o pescoço entre a grossa corda e a larga e resistente tira de cabedal. Só nesse momento o dono do doberman resolve aplicar-lhe um furioso pontapé, penso que lhe acertou meio na cabeça meio no pescoço, levando a que este, depois de cair, se afastasse cambaleante.

 

Para além de uma inesperada atitude de quase absoluta calma provocada pela exaustão extrema, o labrador parecia estar bem tranquilamente refastelado observando a dona a um metro a chorar convulsivamente. Não sei se só pelo efeito da descarga nervosa, afastei-me de imediato da multidão que crescia e se acotevelava em tão pouco espaço, mas acredito que com algumas lesões e seguramente muitas nódoas negras mas, apesar de tudo, com alguma sorte. O enorme vermelhão na parte lateral do pescoço, e a incapacidade de mexer o braço direito que repetia entre esgares de dor, não anunciavam nada de bom, mas podia ter sido bem pior.

 

 


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semtelhas @ 12:02

Sex, 22/01/16

 

Tendo acabado de assistir a "O Renascido", ainda cheio de sede de vingança e com as mandíbulas ensanguentadas a clamar por carne, optei por um restaurante de grelhados. Nunca lá tinha ido e aquela hora, meio da tarde, é pouco frequentado pelo que para além do patrão que simpáticamente nos serviu e da patroa que por detrás do balcão nos ía lançando uns sorrisos comerciais, andava a deslizar ali pelo meio das mesas a empregada da limpeza agarrada a uma esfregona a qual fazia passear indolentemente, mas com eficácia, pelo piso negro de um material que não consegui identificar. Mulher talvez pelos quarenta, baixinha, cabelo preso e com um rosto indistinto fazia-se notar por um olhar fugídio, para além de um relance que me lançou exatamente antes do momento em que desapareceu dali nunca a encarei nos olhos, possuidora de uma visão lateral de pedir meças ao Messi, eram sobretudo as enormes protuberâncias que se lhe elevavam orgulhosamente do peito que chamavam a atenção. Usava uma camisola branca em algodão PGM, fina e transparente, que deixava ver o sutiã preto, daqueles que são uma espécie de quarto de bola e fazem jus ao nome, sustentam por baixo e imagino sejam feitos de poderosa fibra de carbono tal o peso que suportam, deixando à solta todo o resto que goza alegre e saltitante daquela liberdade controlada. Primeiro o filme, das mais paradigmáticas demonstrações do que pode ser o cinema em toda a sua força e espetacularidade, exceto naquilo que talvez mais conte numa autêntica obra de arte, transmitir uma qualquer espécie de esperança no futuro por via de um exercicío de beleza, mesmo se recorrendo à mais atroz das violências como é o caso, o que manifestamente não consegue. Depois aquele restaurante vazio mas pleno de interesse face à postura, digamos, comercial, dos três personagens, particularmente da inusitada empregada, que me fez lembrar o trocadilho entre "butterface" e "but her face!", utilizada para nomear mulheres feias mas apetitosas, neste caso o mais adequado seria "mas aquelas prateleiras!", levaram-me a recuar trinta anos e a outros restaurantes mas na terra do Tio Sam.

 

Na verdade desde que deixámos para trás o Canadá, frio e cinzento por fora, demasiado quente e iluminado por dentro, insonso e triste em qualquer dos casos, pelo menos naquele remoto mês de Maio ainda bem nevoso por aqueles lados o que nos obrigou a fazer, literalmente, quilómetros, em verdadeiras cidades subterrâneas, e entrámos nos EUA, sempre dentro de um jipe percorrendo desde as montanhas Cherokee bem a norte até ao sulista Alabama, cruzando vários estados e cidades como Nashville, Charlotte, ou Atlanta de onde seguimos de avião para Nova Iorque, isto é desde o interior à mais palpitante das cidades, parecia estarmos permanentemente na presença de um qualquer eficiente e simpático vendedor. Fosse o índio da reserva junto ao qual nos fizémos fotografar, o patrão e as empregadas da várias fábricas textil que visitámos, os ascensoristas dos hoteis, enfim fosse quem fosse que nos atendesse em todo o lado, não havia ninguém que não estivesse a vender alguma coisa. Um imenso e eficiente departamento comercial.

Por estes dias em que paira no ar como que uma dúvida global, o que realmente importa? O pragmatismo do negócio e da feroz concorrência que prometem o sacrossanto crescimento, ou a dita utópica opção por uma espécie de meio caminho entre isso e o respeito pela dignidade humana, seja lá isso o que fôr em função das latitudes de que se fale? Apetece-me pensar que apesar da inegável excelência de uma obra notável como é "O Renascido", seguramente, nestes próximos tempos, um potente arauto da força dos EUA e, acima de tudo, fonte de imensamente lucrativo negócio mas considerávelmente vazio de uma mensagem da esperança pela qual todos gritámos, escolho o outro escaparate, as "prateleiras" de todas as anónimas e simples empregadas que por esse mundo fora representam com simplicidade aquilo que realmente interessa, a ingénua(?) e saudável humanidade.


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semtelhas @ 14:47

Ter, 14/07/15

 

Os novos e os velhos, os inocentes e os sábios, é especialmente deles que se enchem as praias durante os dias úteis nas primeiras semanas de bom tempo. As crianças são às centenas e manifestam-se como nelas é próprio, plenas de energia, truculentas, barulhentas, gritam vida e alegria por todos os poros. Quando param é possível ler-lhes nos olhos o espanto da sucessão de descobertas no que as rodeia, e as altas expectativas de em tudo aquilo virem a participar o mais ativa e rápidamente possível. Observam atentamente e com uma capacidade de gravação da qual sequer suspeitam, o que lhes parece ser o mais apetecível que os adultos exibem, a escolha depende da sua circunstância, meio ambiente e pessoas que as rodeiam, sejam comportamentos, roupas, haveres, aparências. Há contudo um grupo também por ali presente com o qual não perdem muito tempo, o dos mais velhos, porque naquele já não depositam muitas esperanças nem encontram grandes motivos de admiração. É que normalmente permanecem quietos, com expressões mais ou menos vazias nos rostos, corpos quebrados, decadentes, usando vestuário sem qualquer atrativo. Na verdade, tudo aquilo, o frenético desfile dos "adultos", que são as razões para o espanto de uns, os mais novos, é-o para o desencanto de outros, os velhos, exceto exatamente aquelas criaturas que as ignoram, as crianças, onde se reconhecem na memória e, sobretudo, por via de quem recuperam uma réstia do remoto sentimento de esperança e entusiasmo, um breve vislumbre num escasso instante, logo perdido face a uma realidade demasiado evidente.

 

Pelo meio, entre as crianças e os velhos, unidos quase exclusivamente pela fragilidade, a turba, a esmagadora maioria, os que fazem "andar a roda", origem e destino da maior parte daquilo que convencionou chamar-se de vida ativa, onde estão alicerçados boa parte dos fundamentos da existência tal qual a conhecemos. Tudo feito em volta de um conjunto de interesses sob os quais prevalece a sobrevivência e o medo, e sobre os quais paira o poder e o sonho. Fazem-se anunciar das mais diversas formas, desde as posturas, um vasto leque, nascidas do berço, da educação, dos genes, passando pela exibição do status via todo o género de ornamentações, até ao mais, ou menos, informal contacto, onde reside a verdadeira possibilidade de descodificação do individuo. 

 

Estranho mistério este, onde o habitual tocar dos extremos também na vida parece querer explicar através de uma espécie de fechar do ciclo, o encontro entre a magia da ilusão, e a dura realidade do irrevogável, entre os quais é percorrido um caminho feito da lenta  e dolorosa constatação, e da absoluta impossibilidade de transmissão de algo que tem de ser vivido de facto, sentido na pele e na mente, realidade indispensável para que se cumpra a nossa condição de seres insaciáveis na demanda da diferença. Como se houvesse uma força invisível que impede os velhos de revelarem aos novos a "segredo" da existência, como se esta não resistisse a essa revelação, quase como se a génese de tudo estivesse exatamente aí, nessa cegueira obstinada, que permite que os mesmos equívocos sejam permanente e repetidamente cometidos, e em nome dos quais é construída a evolução. Uma espécie de primordial crescimento, pela dor, onde o lugar da dúvida sincera, essência da humildade, tem de ser conquistado à custa de sangue, suor e lágrimas de todos e cada um, e ao longo de muito, muito tempo, por vezes, a maior parte delas?, toda uma vida não chega. 

 


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semtelhas @ 12:24

Sex, 26/06/15

 

Estava frio e enevoado, a ameaçar chuva puxada pelo forte vento. Quase em Julho a praia estava praticamente vazia. Havia aquele vulto com os joelhos na areia, perto do passadiço, debruçado sobre qualquer coisa que só percebi tratar-se de um papagaio quando me encontrava perto dele. Levantou-se, ainda completamente concentrado na sua tarefa, não deu por mim, esticou o braço e então pude ver o artefacto azul e verde, naquela forma habitual, espécie de escudo em losango, aparentemente feito de materiais reciclados, sacos de plástico usados e canas apanhadas mesmo ali ao lado? Tudo muito rudimentar inluindo o fio que me pareceu de corda, normalmente usada em embrulhos, emendado em vários sítios e certamente bastante comprido atendendo ao enorme rolo. Mas o que mais me atraiu no estranho quadro, e me levou a diminuir o ritmo da marcha, foi o aspeto do homem. Na casa dos quarenta, pele do rosto escura, fortemente tisnado pela excessiva exposição solar, barba negra e rala por fazer há vários dias, cabelo preto relativamente comprido e notóriamente oleoso, olhos semicerrados, nariz largo e um fio no sítio da boca. Um rosto que longe de velho parecia gritar desilusão e amargura, nas suas marcas de contrariedade e expressão fria, não obstante naquele momento nele ter estampada a obstinação do cumprir um objetivo.Vestia roupas muito gastas e sujas e nos pés usava umas sandálias velhas. Não escolheria figura mais improvável para lançar um papagaio, identifica-lo-ía muito mais fácilmente como uma daquelas pessoas completamente empedernidas por uma vida dura, mais dadas aos pragmatismos da sobrevivência a qualquer custo. Mas ali estava ele a dar longas corridas num enorme esforço contra o vento, tentando fazê-lo subir em direção ao céu cinzento. Afastei-me desejando que a enigmática e solitária criatura tivesse sucesso enquanto ía deitando umas olhadelas para trás, vendo-o cada vez mais exausto prosseguir a sua luta.

 

Terão passado uns vinte minutos quando, na volta, ainda longe, lá no alto, ora em curtos e lineares ou então mais longos e circundantes, mas sempre furiosos movimentos, reparo no papagaio azul esverdeado, agora muito mais pequeno mas estranhamente firme, se comparado com a fragilidade que aparentava quando o vi pousado no chão a poucos metros, feito em coisas que parecia irem desfazer-se ao primeiro embate. Pouco depois, imediatamente a seguir à curva onde tinha deixado de o ver para aí a cem metros, descubro-o. Estava sentado numa rocha equidistante entre o mar e o lugar onde fizera o "bicho", e à medida que dele me ía aproximando, mais constatava a enorme mudança que entretanto nele se verificara. Aproximo-me o que faz com que durante breves segundos desvie o olhar do sonho para a realidade sem contudo alterar a expressão. Um rosto que se mostrava tranquilo e confiante à frente do qual a outrora imunda agora transformada em farta cabeleira, dançava vigorosa e solta ao ritmo das rajadas, tal como os trapos até eles exibindo acertada complementaridade, sorriso nos lábios surpreendentemente vivos, olhos azuis muito claros e bem abertos fitavam satisfeitos e fixamente o objeto ainda há pouco feito com as suas próprias mãos, de um branco inesperadamente imaculado, que seguravam sem cedências aos fortes puxões, para os libertarem, "bicho" e homem, lá no alto onde moram as estrelas, o sol, o azul e os pássaros, com a sua larga e quase infinita visão, longos voos, planares deslizantes e suaves sobre um mundo que, aquela distância, é sempre belo e harmonioso, isento de dificuldades. O que eu observava agora era o menino que aquele homem fora, pleno de sonhos e esperança, ali e daquela maneira reencontrado numa efémera tentativa de recuperar o para sempre perdido. Para aquele homem, apesar de tudo, ainda há esperança.


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semtelhas @ 14:24

Seg, 22/06/15

 

Quantos segredos foram desvendados, guerras iniciadas, impérios destruídos, inventos vislumbrados, suicídos cometidos, livros escritos, caminhos escolhidos, e sei lá que mais fruto da sedução? Desde os primeiros tempos que a arte de seduzir controla o futuro dos homens e a tendência não é diminuir. Quem pode ignorar que tantas vezes é essa mistura explosiva entre o charme e a sedução, mais que outra coisa qualquer por muito óbvia que seja, a ditar a eleição de presidentes ou a opção por estratégias duvidosas.

 

Há no entanto um género de sedução que todas as outras supera, a praticada por uma mulher, tanto mais potenciada quanto ela mais corresponda aos ideais imaginados. Espécie de essência do fenómeno é nessas circunstâncias que o seu efeito é mais avassalador em todos os aspetos, nomeadamente na sua faceta de necessidade imediata, mas também na forma como resiste ao tempo. Quando à beleza é somada a capacidade de através de um olhar, de um quase impercetível gesto, de uma palavra ou da sua ausência, daquela peça de roupa que se usa, da postura, da inteligência, transmitir uma sensação de vontade, de disponibilidade, de urgência, de interesse, então a magia realmente acontece. Quem é irrevogavelmente seduzido é transportado levitando a um qualquer lugar paradisíaco que mora algures no fundo de todas as consciências racionais, mais, algo que procuramos incessantemente durante toda a vida e pelo qual estamos dispostos a dá-la. Uma dir-se-ía total irracionalidade que mais não é que a libertação da razão que a todo o momento nos aprisiona e sufoca, e contra a qual na verdade, dela fugir, decorre boa parte da existência.

 

Tive a felicidade de experimentar este sentimento arrebatador algumas vezes e em várias circunstâncias, sendo que na maior parte delas consegui disfrutá-lo satisfatóriamente quando não concretizá-lo mesmo até aos limites da sua durabilidade. Houve porém outros casos em que isso era impossível, daquelas impossibilidades práticas como, por exemplo, quando jovens nos apaixonamos por um personagem de um filme. No caso ela era muito bonita mas sobretudo de uma sensualidade insuperável, à qual acrescentava nas medidas e critérios absolutamente exatos uma malícia profunda e devastadora. No filme, quando entra em determinada casa, pura e simplesmente conquista, sem dó nem piedade, o coração e os mais intímos apetites de todos os machos que nela viviam. Claro que a realização da fita é de grande mestria, mas é evidente que boa parte daquilo tudo, uma autêntica viagem pelos mais recônditos sonhos do que possa ser um paraíso, se devem à fabulosa atriz. Chamava-se Laura Antonelli e morreu hoje, mas na minha mente continuará a viver tão bela e presente como sempre, e enquanto eu tiver memória.

 

 

 

 

 


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semtelhas @ 15:58

Seg, 15/06/15

 

"Bolso", ainda consegui ouvir, mas já não deu para perceber as explicações que ele se esfalfava a debitar enquanto ela mantinha aquele ar ofendido. Mas outro desenlace não seria de esperar após aquelas palavras que espirítos mais persersos poderiam imaginar bem diferente. Ele, baixito, ainda mais atarracado devido às roupas manifestamente pequenas para albergarem consideraveis extensões de gordura, para além de desadequadas para passear num passadiço sobre a areia perto do mar, óculos de armação muito antiquada e portadora de espessas lentes, toda uma imagem de insegurança que ela, um pouco mais alta mas também mais gorda, ainda que menos notável dada a roupa larga mas igualmente errada para ali, claramente glosava, não obstante estar longe de ser uma brasa, mantendo assim um claro ascendente sobre o pobre homem. Toda uma vida feita de chantagens, plena de amuos e reconciliações sempre no mesmo sentido. Que engordem juntos muito felizes.

A situação trouxe-me à memória esta mesma expressão mas então utilizada por uma querida excolega, bastante simplória, onde a inteligência não abundava, que a utilizava profusamente sempre que tinha um namorado, um sem fim ou propósito de mores por tudo e por nada, se com ele falava ao telefone. Figura ternopatética, sobretudo o rosto no qual invariávelmente permanecia o esgar de uma espécie de sofrimento resignado, era no entanto possuidora de um belo corpo, magra, com tudo no sítio, razão pela qual, imagino, conseguia ir colecionando companheiros que, talvez cansados de tanta meiguice a cheirar a subserviência, e apesar do parco ordenado que sempre punha à disposição deles, insistiam em deixá-la ao fim de pouco tempo. Acredito que a insuperável burrice que tão ingenuamente ostentava também não ajudasse nada. A esse propósito, lembro-me de quando, logo nos primeiros tempos das máquinas para pagamentos com cartões, e numa ocasião que se fazia acompanhar com uma colega comum aquando de uma ida às compras a um centro comercial, após a menina do shoping lhe ter dito, "carrega três vezes e ok", a doce criatura, depois de zelosamente premir o dedo sobre as respetivas teclas, baixou-se de forma a ficar com a boca bem perto da máquina, e numa voz decidida, coisa muito rara nela, enquanto olhava para quem a rodeava como o fazem as crianças ao executarem pelas primeiras vezes uma habilidade na expectativa de palmas, disse "ok, ok, ok".

 

Embalado por aquela visão inspiradora o resto do percurso passeio a tentar decifrar, escutando atentamente e o melhor possível atendendo a que emissor e recetor estavam em movimento, as conversas dos meus companheiros de passadiço. Não foi surpresa nenhuma perceber que mais de metade é constituída por senhoras de meia idade cujas características são inconfundíveis, maioritáriamente aos pares, condição essencial para exercitarem aquilo que para elas, e para mim naquele dia, mais interessava, a língua, vestem normalmente roupas demasiado apertadas e vistosas para a idade, tentando assim, simultâneamente, recuperar tempo perdido, tantas vezes agora livres da pressão de maridos opressivos, seja por já terem partido desgastados por tanta consumição, seja porque, tarde, ficaram espertos, ou até, quem sabe, arranjarem um romance tardio qualquer. O certo é que enquanto vão debitando a lenga-lenga do costume da qual fazem parte todo os tipo de coscuvelhices, maldicências várias e ternurentos relatos a propósito de netos queridos e filhos ingratos, sem qualquer pudor fitam bem nos olhos aquele tipo de peixe que julgam mais passível de lhes cair nas tentadoras redes.

 

Outro numero considerável de exemplares são, digamos, as filhas das duas senhoras que referi. Eventualmente ainda em plena atividade profissional, por isso muito mais raras, para além de naturalmente se movimentarem melhor, vestem trajes bem mais confortáveis para o efeito, também mais discretos, discrição que, ainda conscientes e/ou dependentes de filhos e maridos, em boa forma e com aparências capazes de suscitar apetites, mantêm na postura perante quem com elas se cruza relegando os ou as infelizes para uma inabalável indiferença. As conversas, essas, costumam exibir um tom de revolta de quem se sente profundamente injustiçado lá no emprego, sendo que normalmente o alvo é um ou uma qualquer colega, ou chefe, que tem a mania de se armar em importante ou agir com prepotência. Revelam uma atitude competitiva e ressabiada tão própria destes dias, e que um olhar mais prolongado sobre as respetivas mães, seguramente portador de esclarecedoras mensagens, porventura as conduziria a mudanças que as poupariam a sofrimentos semelhantes aos das progenitoras. 

 

Grupos de homens são mais raros e quase exclusivamente já de meia idade, mas quando acontecem manifestam-se mais objetivamente, isto é, ou andam para ali a arrastar-se, pura e simplesmente a marimbar-se para o exercícío limitando-se a passear as enormes barrigas, enquanto largam umas larachas sobre bola ou politíca repetidamente interrompidas por sonoras e demoradas gargalhadas, ou então, os, apesar de tudo, ainda mais novos, que são autênticos fundamentalistas, verdadeiros escravos de apertados planos prósaude, linha, ou outras manias como a de buscarem em si Dons Juans perdidos, e que em vez de andarem correm. Se os primeiros normalmente parece irem de de pijama, com os calções de andar lá por casa, ou de ir à pesca, já os segundos exibem todo um sofisticado equipamento que por vezes chega a requintes tipo cronómetro, e mesmo esquisitos bidões portadores de poções supostamente mágicas. Infelizmente estes últimos pouco falam, quase completamente absorvidos na implacável tarefa, quando o fazem é para lançarem uns aos outros viris gritos de apoio mútuo.

 

Volta e meia lá aparecem casais, os mais comuns exibindo alguma tranquilidade, bem estampada por todo o lado, desde os trapos vulgares e suficientes para cumprir o objetivo, passando pelo caminhar a velocidade mediana e postura descontraída, até aos pequenos diálogos muito próprios de quem está razoávelmente de bem com a vida, pouco mais fazendo do que a ir constatando com alguma bonomia e ironia quanto baste. Mas também os há que insistem em permanecer bem juntinhos, mesmo de mão dada ainda que num mutismo absoluto, sendo que nestes casos é habitual o macho distribuir relances ameaçadores para todos os lados; ou então seguem separados aí uns bons dez metros, cada um na sua, alguém que já não espera novidades de coisa alguma, ou quase... já que aqui e ali lançam umas palavras um ao outro, aparentemente sem importância, mas que sempre serve para justificar uma olhadela que checa distâncias e ciscunstâncias.Também, muito raramente, aparece a dita gente fina, que se anuncia desde logo pelo cheiro a perfumes caros que a brisa obedientemente traz, espécie de aviso à navegação que chega mesmo antes de serem vistos, imediatamente consubstânciado por eretas posturas que transmitem poder e sucesso, também confirmadas por elegantes vestimentas a rigor para o evento, prómenino e prámenina, não esquecendo os inteligentes olhares que pretendem que assim tudo fique dito, é que aquilo trata-se de gente superior e demasiado fatigada para com mais do que isso perder tempo, muito comuns nestes nobre e raros espécimes, seja o frio e fugaz vislumbre da madame, ou o feroz e severo fitar do senhor.

 

Ainda assim a maior parte de nós anda sozinha, logo, calados, mais ou menos concentrados no que ali nos levou e, claro, mesmo solitários, em conjunto beneficiando da presença e da companhia uns dos outros, nomeadamente dos que seguem acompanhados que, como quadros vivos em movimento, nos lembram o que é a vida real e dão todo um outro sentido a tudo aquilo, espécie de razão acrescida, maior, muito para além do simples exercicío ou passeio, sem os quais o resultado final seria bem diferente, uma banal pista de treinos, ou insosso porque pobre desfile de vaidades.

  


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semtelhas @ 11:32

Dom, 31/05/15

 

Homossexual assumido quando tal ousadia só era permitida a "aves raras", incontornavelmente e exclusivamente assim aceites, alguém que era mantido a uma distância conveniente, visto como outrora os bobos da corte e tratado como uma aberração, ou então, como era o caso do Joãozinho, um monumental excêntrico de posses, na meia idade com nome de rapazito que se podia dar ao luxo de exibir e mesmo afrontar um público reverente e hipócrita, uma postura reveladora de apetites que muitos tinham mas poucos ousavam mostrar.

 

Possuidor de um demolidor humor caustico, pleno de sarcasmos, já na altura, anos sessenta, fazia-se passear dentro de uma enorme "banheira", um Opel Record se não me engano, convenientemente grená, uma cor a um tempo chique e vistosa, quando impecávelmente polida, fazendo resplandescer também os inumeros cromados. Seguia majestosamente sentado no amplo e único autêntico sofá de sala que aquilo parecia, de porta a porta, muito comum nos "espadas" daquele tempo, seguramente, pensavam os mais impuros, bem jeitoso para inconfessáveis "ginásticas" com o motorista logo ali ao lado, seu inseparável fiel companheiro e criado para todo o serviço.

 

Quando a espampanante viatura deslizava pelas estreitas ruas do lugar onde vivíamos, um daqueles sitios onde todos se conhecem nutrindo uns pelos outros os mais variados e conhecidos sentimentos, alimentados sobretudo pela miséria, inveja, mesquinhez, subserviência, e muita prepotência e vaidade de poucos sobre quase todos, ele a caminho do seu palacete rodeado de um vasto  e verdejante jardim, mesmo ao lado da igreja e com uma incrivel vista sobre o Porto lá ao longe, já os embasbacados e reverenciais espetadores das suas pequenas e tantas vezes escuras e mal arejadas habitações, entre, naturalmente, outras atividades. Nessas ocasiões podia ver-se uma criatura magra, fina, e com ar contrito, quase reverencial, ao volante, e, ao lado, uma espécie de Buda avermelhado, esparramado ainda que bem direito, agarrado à pega lateral superior para, digamos, não adornar, mas possuidor de uma expressão onde imperava a dignidade e poder dos reis.

 

Quanto a mim, observava-o quando, como habitualmente, andava por ali ou vinha, ou ía para casa, no caso de qualidade e conforto bem acima da média para o lugar, um daqueles predios com uma grande abertura comum interior para quatro inquilinos, delimitada na frente por um jardim e atrás pelos quintais milimetricamente divididos, escrupulosamente aproveitados através de hortas de entre as quais orgulhosamente sobressaía a do meu pai, dali saíam as melhores batatas, os maiores nabos ou cenouras, ou brotavam os mais vistosos e saborosos legumes, mas, mesmo assim, não escapava à jocosa denominação que por Joãozinho lhe era dada de Ilha da Babi, tudo por causa de uma razoavelmente gorda mas sobretudo extremamente ruidosa cadela com aquele nome, com a qual o ilustre mantinha um odiosa batalha muito particular, a bicha, por razões desconhecidas, ladrando até à exaustão quando o via na desesperada esperança de uma gostosa mordidela, ele ruminando mudas vinganças que logo vertia sobre os pobres humanos dela vizinhos.

 

Mas não só. Porque tinhamos um conhecimento comum, um dos tais quatro inquilinos, durante para aí uns três ou quatro verões, talvez entre os seis e os nove anos de idade, e porque ele naturalmente vivia dos rendimentos recebidos das rendas dos muitos estabelecimentos comerciais que tinha nas melhores ruas do Porto, logo tinha todo o tempo do mundo, faziam uma diaria e matinal visita à praia na qual eu os acompanhava durante praticamente aos três meses de férias grandes, rotina só interrompida aquando das férias dos meus pais. Foi por isso meu previlégio, a boiar no banco de trás, também ele corrido, ao lado dessa carinhosa mas especialmente solícita vizinha a quem chamei tia desde pequenino, muito porque de facto desempenhava esse papel e nada pelo cliché exclusivo dos da Foz, pela janelas invariavelmente fechadas para não perturbar a circulação da ventilação artificial que se fazia sentir estranhamente fresca, observar os meus habituais companheiros e conhecidos de olhos arregalados, uns de admiração, outros de inveja, mas todos de espanto.

 

O verdadeiro espetaculo começava quando finalmente chegavamos, bem cedo para nunca perder para outros o previligiado local estrategicamente selecionado pelo incansável companheiro de Joãozinho, com largas vistas para o mar que ficava a uma vintena de metros na vazante, e a uns palpitantes dez na enchente ainda que sempre suficientemente seguro, mas sobretudo protegido do vento, por aqueles lados muito habitual, por um imponente muro de rochas a norte, às quais nos, e encostavamos as várias sacas onde transportavamos toda aquela panóplia de coisas necessárias a uma permanência que nunca era inferior a umas quatro horas, aí entre as nove da manhã e a uma da tarde, isto quando não eramos prematuramente corridos pela subita aparição de um inesperado nevoeiro, ou arreliadora e inabitual circulante ventania. Depois de devidamente estudado e limpo o terreno, tarefa a que se dedicava com aplicação religiosa o Duarte, o circunspecto acompanhante, e a frenética e prestável Armanda, minha vizinha e sua cunhada, seguia-se a cerimónia do estender as toalhas, a dele uma espécie de lençol mas incrivelmente espesso e fofissímo, sempre em cores garridas, à beira do qual a minha mais parecia uma raquítica fralda de bébe muito gasta pelas inumeras lavagens. Só então se instalava o Buda, gordo e sempre coradissimo, mas, no início da época com o corpo ainda palido, era para tratar disso mesmo que ali estavamos, transformá-lo num atraente e pelo menos aparentemente supersaudável enorme morenaço, uma pele escura onde iriam brilhar grossas voltas e pulseiras, uma profusão de aneis recheados de luminosas pedras, tudo em ouro do melhor, e magníficos relógios das mais caras marcas. Toda uma sumptuosidade que caía como uma luva naquela imensa figura, que se tornava imponente quando era possível vislumbrá-lo fora daquele ambiente. Para além da aura que sempre envolve de mistério alguém que se sabe muito rico, era também graças ao bem tratado ainda que curto cabelo ondulado quase todo branco, a encimar um rosto largo e invariavelmente risonho, finas camisas generosamente abertas até meio do peito, para mostrar a supostamente sedutora selva acinzentada, calças a igualmente exibirem uma elegância e leveza ímpares, confortáveis e brilhantes sapatos pretos, porque tudo isto resultava esplêndido apesar do elefantino pesado andar, onde as mal disfarçadas guinadas laterais num esforço de equilibrio, tinha uns surpreendentes pequenos pézitos, eram consideráveis. Mas isso era mais tarde, por agora era preciso trabalhar para o indispensável bronze, tarefa da qual só eu era dispensado brincando por ali perto, isto porque uma vez a sagrada criatura pronta para o efeito era de imediato laboriosamente untada por magnifícos e imagino que caríssimos óleos e cremes, seguramente altamente eficazes na arte de colorir, mas também de proteger a preciosa pele, não esquecendo o inebriante perfume que soltavam, enquanto os incansáveis ajudantes se esfalfavam debaixo do sol inclemente, para só depois terem direito ao descanso do guerreiro.

 

E assim íam decorrendo aquelas manhãs mágicas, entre as referidas e sempre repetidas cerimonias, as matematicamente estudadas no tempo, nas suas vertentes quando e quanto, bem contra a minha vontade aliás, idas ao mar, que desempenhavam fulcral papel no sedutor escurecimento de "sua majestade", também, e muito, para eles a maior parte daqueles horas e para mim entre quase sempre solitárias brincadeiras de praia, intermináveis e galhofentos monólogos do "verdadeiro artista". Aconteciam enquanto a sua imagem ía evoluído de uma espécie de lagosta gigante acabada de cozer, para o de ansiada apetitosa criatura. É que, para além de tudo o mais, era possuidor de um olhar verdadeiramente cirurgico sobre tudo onde pousava os olhos, e uma não menos acutilante afiada língua para o expressar por palavras, pelo que se assistia a um espetaculo de permanente risota perante os inigualáveis jocosos comentários, plenos de fina ironia misturada com o pior vernáculo e cruel sarcasmo, tudo acompanhado de estudados ou institivos maneirismos, um sem fim de gestos e caretas, nomeadamente quando recorria à apreciação de manias ou pequenas fragilidades que incrivelmente descobria e brilhantemente desvendava, fosse num qualquer desconhecido que de momento passava, ou, na falta de movimento, recordando este ou aquele personagem do nosso conhecimento comum.

 

Passada essa época dourada deixei praticamente dele ter qualquer noticía durante longos anos até que, para meu grande espanto, um ou dois dias antes de me casar, recebi das mãos da minha "tia" Armanda um embrulho de dimensões e peso razoáveis, que me informou ser a prenda de casamento de Joãozinho. Era um bonito e requintado serviço de café do qual agora seguro uma chávena, durante uma até agora sempre adiada e finalmente levada a cabo corajosa arrumação, são anos e anos de coisas empilhadas, que me trouxe estas saborosas memórias dessa amargodoce figura ímpar.


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semtelhas @ 14:48

Qua, 13/05/15

 

É relativamente comum encontrar crianças que por várias razões mas especialmente por falta de companhia, arranjam um amigo imaginário com o qual interagem assim mitigando a sua solidão. Na maior parte dos casos com o passar dos anos esse efeito mágico vai-se perdendo, e então a maturidade,  por via de um natural e crescente maior convívio com os outros, traz consigo uma espécie de "cura" daquilo que se numa criança pode ser considerado normal, num adulto carrega um estigma que pode chegar à esquizofrenia.

 

Acontece que se aqueles mesmos instintos com que a natureza nos dotou, nomeadamente uma certa beligerância como arma para uma sobrevivência sempre acima de tudo, talvez com a única exceção da circunstância maternal, durante a formação remetem para sentimentos e atitudes normalmente positivas, encaradas como e efetivamente aprendizagem para a vida, já enquanto adultos os mesmos acabam por resultar na tal esquizofrenia, tantas vezes consubstânciada em patologias extremas, ainda que feliz e muito mais habitualmente "só" numa vivência intranquila.

 

É quando o amigo se transforma num inimigo imaginário. Então instala-se a mania da perseguição como mobil para o exercício do inescapável instinto de sobrevivência, o instalar de uma guerra pessoal e permanente contra o mundo, que autoconsome e espalha a infelicidade em volta. O fenómeno é muito comum em particular na sua versão menos profunda, digamos que em última análise todos sofremos deste mal, o qual aliás, na dose certa, acaba por ter o lado positivo que todas as coisas têm, no caso o desenvolvimento de defesas perante a adversidade, o problema é quando se entra numa espiral negativa em que alguém se sente completamente isolado.

 

Acredito que boa parte do sucesso, aquele que é espelhado por uma maneira de estar minimamente tranquila, suficientemente isenta de agressividade, credor do respeito de todos, radica sobretudo na capacidade de ser humilde ao ponto de perceber que no essencial somos todos iguais, apesar das aparências. O segredo estará em transferir esse inato e comum a todos espírito de luta, não em guerras estéreis contra semelhantes mas na procura de um qualquer objetivo de vida, nobre e construtivo, sendo para isso absolutamente necessário não cair nas inumeras e constantes armadilhas a que estamos sujeitos, muito em especial aquelas que pretendem fazer crer ao sucesso corresponder não uma atitude mental positiva e saudável, demonstrada no inalianável respeito pelo outro, provávelmente nunca tão bem explicado como pela máxima de não fazer ao outro o que não se quer para si própprio, mas na maquiavélica opção em ter mais coisas ou mais poder que os outros.


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semtelhas @ 12:19

Qua, 06/05/15

 

Há um livro intitulado "A Mulher da Areia", uma metáfora fantástica sobre o sufoco que pode significar a vida, assim como uma miríade de autores que recorrem à paisagem do deserto para exporem as suas maiores angustias, ou exultarem sobre as virtudes da existência.

 

Mas não é para falar desse tipo de filósofos que escrevo, apesar de acreditar que a massiva presença da tão afamada substância, grandes espaços livres e refletores da luz redentora, motivo para os maiores sonhos ou ainda mais devastadores pesadelos, também neles possa contribuir para um estado mais ou menos exaltado que os transporte às suas próprias profundezas. 

 

Quer chova ou faça sol, corra uma suave brisa ou sejamos fustigados por furiosa ventania, lá estão os trabalhadores da Câmara Municipal a desempedir da inconveniente areia o passadiço, por onde diáriamente circulam junto ao mar dezenas, ou mesmo centenas, depende da intempérie. Arregimentados pelo Estado ao vastos exércitos de desempregados para alinharem nas cada vez menos correspondentes fileiras dos subsídiodependentes, assim cumprem uma espécie de serviço cívico no qual o facto de simplesmente estarem ocupados, ou talvez mais importante, não encararem a passagem do tempo como algo parecido com uma incógnita, não é de somenos importância. 

 

Hoje devidamente fardados, o que lhes confere uma certa dignidade via sensação de pertence ao Grupo, vão desenvolvendo a sua atividade de uma forma, digamos, livre, o que só vem confirmar, e bem, a tal vertente eventualmente essencial da questão ocupacional. Observando-os, a eles, a maioria, e a elas, podemos encontrar os mais variados estilos, tal como em qualquer outra atividade, mas, curiosamente, neste caso não são raros os exemplos de gente que manifesta uma estaleca acima da média. Essas sensações chegam por via de um olhar mais atento aos seus rostos, da profusão de piercings ou tatuagens mais improváveis em pessoas claramente de meia idade, também numa rápida descodificação na forma como encaram quem passa, mas sobretudo no desempenho do seu trabalho.

 

Seguramente 80% do tempo passam-no em amena cavaqueira com o companheiro ou companheira, normalmente funcionam aos pares, restando os restante 20% para, fazendo uso de um zelo admirável consubstânciado numa lentidão quase científica, efetivamente limparem as traves da madeira da arreliadora areia, alguns mesmo com laivos de artistas tal é o resultado geométrico da obra, infelizmento logo, quase invariávelmente, destruído, mas imediatamente corajosamente retomado. Isto tudo nunca descurando o importantissímo cliente, é assim que me sinto quando face à minha aproximação da zona dos trabalhos, o mais atento ordena firme e bem audível a interrupção imediata dos mesmos para que eu, bem como todos os outros, inchados por tanta deferência, passemos impantes, circunstância que acontece constantemente. Não menos notável é a magnífica postura que adotam durante os longos e imagino que socráticos diálogos, direitos, olhos nos olhos, uma mão sábia e tranquilamente pousada na outra, e ambas sobre a pega da pá que descansa apoiada verticalmente sobre uma trave de madeira, por vezes com uma perna elegantemente cruzada,  enfim, dignos da beleza plástica do metálico Pensador de Rodin!

 

Um destes dias, depois de várias semanas de aturada limpeza que quase conduziu à total ausência de areia, chegou uma tempestade que, numa noite, a repôs em todo o percurso chegando em alguns sítios a meio metro de altura, desabafei solidário junto de um dos trabalhadores mais antigos e do qual sempre recebo, e devolvo, uma cordial saudação, "tanto trabalho para nada!", ao qual respondeu exibindo eloquente indiferença onde eu esperava desalento, "o turno da noite trabalhou ainda melhor". Se isto não é filosofia...


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semtelhas @ 14:39

Seg, 27/04/15

 

As várias formas de manifestação artística, no sentido mais largo, ou menos exigente do termo, e a literatura em particular, tendem a proporcionar básicamente dois resultados completamente distintos, um consiste em tirar-nos de nós mesmos, distrair-nos através da criação de uma abstração que, na maior parte dos casos, tem por objetivo que durante aquele espaço temporal o sujeito esqueça a realidade. Outro bem diferente é aquele que força a uma instrospeção, que tenta remeter-nos a nós mesmos, que tal como o primeiro recorrendo ao poder da abstração, o faz procurando utilizar a obra não como objeto de evasão da realidade, mas como forma de a questionar, normalmente via metáforas, ao contrário do primeiro caso onde o processo tem muito mais a haver com a plasticidade do relato. O policial e a poesia serão, porventura, os exemplos mais eloquentes das duas formas de expressão.

 

Seria ridículo qualificá-las sobre o ponto de vista qualitativo enquanto comparação, mas não deixa de ser verdade que cada uma delas provoca efeitos diferentes sobre quem a elas se sujeita e, logo, diferentes reações. Em ambas as hipóteses há verdadeiros génios a praticá-las, mas as consequências daí resultantes são bastante diversas quando não mesmo opostas. Claro que em qualquer dos casos existem exceções, mas a verdade é que a probabilidade de encontrar um poeta milionário é infinitamente inferior a que isso aconteça com um bem sucedido escritor de policiais.

 

É nas causas e respetivos efeitos do fenómeno que reside o essencial da questão, ou, numa das perspectivas, o segredo do negócio. É sabido desde a ancestral Atenas que a poucos interessa um exercício permanente de questionamento sobre o "estado das coisas", pois tal atitude provoca a contínua insatisfação e o consecutivo pôr em causa a ordem estabelecida. A pergunta pertinente é se tal se deve ao facto ao inconsciente mas indelével conhecimento, comum a todos, que e só assim será possível viver em sociedade, talvez o tal bom senso equititativamente e insuperávelmente bem dítribuído de que falava Kant, ou à demonstração da verdadeira natureza essencialmente "animal" dos homens tal como defendia Nietzsche?

 

O que se tem como certo é que a essa tal maioria à qual parece interessar manter-se num estado, ainda que tantas vezes consciente, mais ou menos "vegetativo" de preguiça mental, uma ignorância forçada mas sobretudo permitida, correspondem duas minorias que, funcionando como espécie de contraponto, se vão revezando ao longo da História na incansável luta entre si para obter o domínio da vastidão do "rebanho". A uma correspondem os detentores do poder material, aquele que confere o direito a TER, curiosamente também ela defensora da ignorância mas aqui com a ferocidade e pelos motivos de todos conhecidos, e onde mais ou menos orgulhosa ou dissimuladamente se incluem os, digamos ainda que "perigosamente" generalizando, os artistas de sucesso, tantas vezes ditos do regime. A outra, esta seguramente uma imensa minoria, se se tiver em conta a sua enorme influência mesmo sem os recursos fundamentais para espalhar a mensagem ao dispôr dos poderosos, que esbraceja todos os dias contra a manutenção da ignorância e todas as suas consequências, nas fileiras da qual heroicamente desbravam esse árduo, e quase invariávelmente árido, terreno a caminho do esclarecimento, os sonhadores, os utópicos e tudo o mais que lhes chamam mas que na verdade, quantas vezes já fora do seu tempo, moldam o SER. Uma dialética primordial em que cada um desempenha o seu papel.


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"O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo."
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